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A casa do filme Parasita e seu arquiteto fictício, apaixonado pelo Sol

Contemporânea, ela tem uma fachada de vidro impressionante. No final do filme Parasita, todos se perguntam: "Essa casa existe mesmo?"

Por mcarini
Atualizado em 17 fev 2020, 15h41 - Publicado em 4 dez 2019, 12h33
Linhas retas, casa contemporânea. Mas o que importa mesmo é o imenso pano de vidro nessa fachada do fundo. Casa do filme Parasita, criada, na ficção, pelo arquiteto Namgoong Hyeonja. O projeto, na verdade, é do cenógrafo do filme, Lee Ha Jun. (Divulgação/Casa.com.br)

Esse texto não tem spoiler (eu acho). E acredito que você tenha caído aqui porque já viu o filme e procurou algo sobre aquela casa. Vou contar como ela foi projetada. E também como se desenvolveu a pesquisa que definiu a casa da família pobre. Não dá para falar de uma sem falar da outra… O filme sul-coreano que ganhou Palma de Ouro no Festival de Cannes 2019, dirigido e roteirizado por Bong Joo-Ho, conseguiu sintetizar o contraste social do nosso tempo no jeito de morar de duas famílias. E me tocou profundamente a delicadeza com que a casa principal, projetada por um arquiteto fictício, chamado Namgoong Hyeonja, se torna o desejo e o símbolo de ascensão. Não é o carro. Não é o tênis. Não é a jóia. É a casa. Ou… talvez… seja o Sol

O jardim na entrada da casa e o primeiro deslumbramento do personagem com a casa rica. Casa do filme Parasita, criada, na ficção, pelo arquiteto Namgoong Hyeonja. O projeto, na verdade, é do cenógrafo do filme, Lee Ha Jun. (Divulgação/Casa.com.br)

Em entrevista a revistas internacionais logo que o filme foi lançado, diretor Bon Joo-Ho disse que a casa, personagem importante desse enredo, precisava de muito Sol. Segundo ele, a classe social em que uma pessoa está inserida determina a quantidade de luz natural que ela receberá durante o dia. Quanto mais pobre, menos janelas ou janelas menores. Quanto mais rico, mais janelas e janelas maiores. Esse briefing foi fundamental para o cenógrafo Lee Ha Jun, que percorreu inúmeros terrenos vazios observando exatamente como era o deslocamento da luz do Sol ao longo do dia. Era preciso também entender a locação com o olhar de um arquiteto moderno e famoso. Na história, a governanta da casa fala de Namgoong Hyeonja como se ele fosse, efetivamente, um profissional conhecido (eu confesso que queria muito ligar o celular no meio do filme para checar no Google se o arquiteto existia mesmo).

Da imensa janela de vidro se vê o jardim. Ricos têm mais acesso a luz natural. Casa do filme Parasita, criada, na ficção, pelo arquiteto Namgoong Hyeonja. O projeto, na verdade, é do cenógrafo do filme, Lee Ha Jun. (Divulgação/Casa.com.br)

Ainda segundo a governanta, o arquiteto fizera a casa para ele mesmo e fora o seu primeiro morador. Pensando nisso, Lee começou a desenhar o projeto em programas de computador. Até que chegou à configuração ideal – que contava, como principal elemento, com o janelão da sala. Ao achar o lote perfeito, a equipe de produção construiu a fachada e todo o andar térreo, com jardins. O andar superior, onde ficam os quartos e o banheiro, foi construído em estúdio. Lee contou que não foi uma tarefa fácil para ele projetar os espaços.

Mais uma vez a integração, os rasgos de luz e os nichos – características de projetos contemporâneos. Casa do filme Parasita, criada, na ficção, pelo arquiteto Namgoong Hyeonja. O projeto, na verdade, é do cenógrafo do filme, Lee Ha Jun. (Divulgação/Casa.com.br)

“Nós, cenógrafos, costumamos priorizar os ângulos e as câmeras de filmagem, enquanto os arquitetos constróem ambientes para pessoas viverem de verdade”, disse em entrevista logo após o lançamento. Me fez pensar um pouco nos espaços de CASACOR, que se aproximam ao máximo do viver real, mas que precisam também gerar belas imagens – já que são efêmeros, e acabam eternizados apenas nas nossas fotos ou vídeos. 

O quadro à direita é da séria Maya do pintor coreano Seung-mo Park. Ele retrata uma floresta. Casa do filme Parasita, criada, na ficção, pelo arquiteto Namgoong Hyeonja. O projeto, na verdade, é do cenógrafo do filme, Lee Ha Jun. (Divulgação/Casa.com.br)

O cenógrafo também se colocou como arquiteto contemporâneo na decoração. Escolheu um sofá fino e reto. Poucos móveis. Nada de TV. O que se vê é o dia. O que se recebe naquela imensa tela de vidro é o privilégio de ter o Sol como companhia. A madeira escura está por toda parte, assim como a transparência do vidro. Os móveis são cinza. Assim como é cinza o grande quadro na sala que representa uma floresta. Essa tela, sim, foi feita por um artista real: Seung-Mo Park. A tela faz parte de uma série chamada Maya do artista sul-coreano (o mesmo artista fez uma segunda tela especialmente a pedido do diretor e do cenógrafo. Ela retrata gatos e fica no piso superior, no corredor). 

Observar sem ser visto. A casa tem integração entre os ambientes e muitos recortes de vidro – e tudo foi pensado para que fosse possível fazer cenas de espionagem doméstica. Casa do filme Parasita, criada, na ficção, pelo arquiteto Namgoong Hyeonja. O projeto, na verdade, é do cenógrafo do filme, Lee Ha Jun. (Divulgação/Casa.com.br)

Existe ainda um elemento invisível, porém fundamental nessa casa. O perfume. Que cheiro vocês acham que essa casa tem? O cheiro de limpeza. O cheiro dos campos e de roupa limpa e passada. Um cheiro iluminado, se fôssemos sinestésicos para vê-lo. Um cheiro tão bom e tão presente que é capaz de salientar ainda mais a diferença entre dois mundos. O filho do casal rico faria menção a esse contraste. O pai verbalizará num momento crucial essa diferença. A mãe perceberá o limite dos cheiros dentro do carro. E, no final, (sem spoiler, mas… reparem) é uma ligeira referência a um cheiro que desencadeará a cena mais impactante. Estamos portanto lidando com um sentido que é difícil de retratar em imagens… (sei disso, porque cada ambiente de CASACOR tem um perfume diferente e, nos vídeos que realizo para a TV CASACOR, sofro por não poder reproduzi-los…). Para a família pobre é tudo tão contrastante que esse detalhe passa despercebido até o momento em que… a família rica o menciona. 

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A escada que sobe para o primeiro andar não poderia ser vista da cozinha pois era preciso criar um espaço para que a espionagem acontecesse também ali. Casa do filme Parasita, criada, na ficção, pelo arquiteto Namgoong Hyeonja. O projeto, na verdade, é do cenógrafo do filme, Lee Ha Jun. (Divulgação/Casa.com.br)

Essas necessidades, que representam a ideia do morar bem, contemplaram na casa do arquiteto ainda um fator extra de proteção do mundo externo. Um bunker. Um bunker contra possíveis ataques da Coreia do Norte. Um bunker contra possíveis ataques de um mundo que ousasse tirar o morador de seu paraíso construído.

Como cenógrafo, a tarefa de Lee precisava atender também algumas necessidades do próprio roteiro. Era necessário que tudo fosse muito integrado, mas que de alguma forma houvesse espaços em que uma pessoa pudesse espiar a outra sem ser visto. Com isso, a escada que leva ao primeiro andar não podia estar visível para a cozinha, por exemplo. Nesse ponto, peço especial atenção às escadas em geral. Elas acabam sendo os elos de interligação dos diversos mundos e, também, os possibilitadores de fuga. Considero muito simbólico pensar que metaforicamente a ascensão social se representa pelo galgar de degraus na vida… 

Repare nos recortes nas fachadas, permitindo a entrada de luz natural. Poucos móveis dão o ar contemporâneo e a busca do minimalismo do espaço. Casa do filme Parasita, criada, na ficção, pelo arquiteto Namgoong Hyeonja. O projeto, na verdade, é do cenógrafo do filme, Lee Ha Jun. (Divulgação/Casa.com.br)

Ao final, gravando sempre as passagens diurnas com luz natural, o impacto da casa nos olhos do público gera a pergunta: “mas essa casa existe“?. Isso divertiu tanto diretor quanto cenógrafos. Não, ninguém nunca morou nela. Ela só tem o pavimento inferior. E foi feita sob medida para o efeito que queria criar. Não sei se Bong Joo-Ho e Lee Ha Jun tiveram a chance de algum dia ler As Cidades Invisíveis de Ítalo Calvino. Fato é que… certa cena me fez lembrar muito da cidade de Leandra, onde as casas eram habitadas pelos pequenos deuses Lares e Penates. Lares eram os deuses que moravam sempre nas casas, mesmo quando os habitantes oficiais iam embora. E Penates eram os deuses que acompanhavam os habitantes de uma casa para a outra. “Prestando atenção às casas de Leandra, especialmente à noite, ouve-se o intenso tagarelar, as repreensões, as trocas de motejos, bufos, risadinhas irônicas”. Isso seria Lares e Penates em discussão sobre quem é mais senhor do espaço. Quando o espaço a nenhum dos dois pertence. 

E a casa pobre? Existe? 

A casa da família pobre mostra o acúmulo de objetos, a desorganização e a precariedade do espaço de convivência. Esse espaço foi totalmente construído em estúdio pelos cenógrafos do filme sul-coreano Parasita. (Divulgação/Casa.com.br)

A resposta vem sem suspenses: não. A vila inteira foi criada em estúdio. E aqui a pesquisa é igualmente interessante. O cenógrafo e equipe visitaram inúmeras vilas, inclusive abandonadas, para entender como criar o espaço. Eles sabiam que não poderiam filmar em casas reais porque pretendiam fazer (atenção… mini-spoiler) uma inundação.

A janela dá início ao filme. Ela é fundamental para compreender a que cenas assiste essa família. Esse espaço foi totalmente construído em estúdio pelos cenógrafos do filme sul-coreano Parasita. (Divulgação/Casa.com.br)

Mais uma vez, o diretor tinha um briefing bastante específico: um apartamento, que recebesse pouca luz e simulasse uma situação, segundo ele, comum em bairros pobres, de semi-subsolo, com meio pavimento abaixo do nível da rua. Assim, o contrate se ressalta entre as duas janelas: a da casa projetada pelo arquiteto – que assiste ao jardim em sua “tela” – e a da casa daquela família pobre que assiste à miséria, ao lixo e ao vizinho bêbado que urina. A vista da janela desse semi-subsolo é a primeira imagem do filme. Também é por essa janela que entrará a fumaça da dedetização, respirada com orgulho pelo pai. E que, depois do filme, nos fará pensar em baratas e insetos rastejantes e resistentes. 

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A escada que leva à rua. Ponto fundamental do filme, as escadas reorganizam o cenário, ligam os contrastes e são usadas metaforicamente para ressaltar ascensão e queda social. Esse espaço foi totalmente construído em estúdio pelos cenógrafos do filme sul-coreano Parasita. (Divulgação/Casa.com.br)

Embora parecesse uma tarefa mais simples, criar esse espaço foi muito mais complexo para os cenógrafos do que criar a casa principal. A quantidade de elementos é infinitamente maior. Porque, como afirmou Lee, diferentemente de uma casa projetada por um arquiteto, as casas nos bairros mais pobres são reformadas inúmeras vezes, sem um critério definido, e não são decoradas. Elas vão recebendo elementos ao longo do tempo, que se sobrepõem. Foi necessário pesquisar e pedir peças em muitos locais para acumular e dar ao espaço o desgaste que ele pedia. Moldaram-se tijolos em silicone para as fachadas, inventaram-se vizinhos com características definidas para que a frente de suas casas também fosse o mais real possível. E o mais real, naquela situação, não é minimalista. A situação de gueto é sempre a do acúmulo, a do medo de não ter. O mínimo como desejo só é possível para quem já desfrutou do muito. Ou para quem sabe que pode ter de novo o quer quiser, quando quiser.

Repare no acúmulo de objetos. E nas múltiplas funções desse banheiro. Esse espaço foi totalmente construído em estúdio pelos cenógrafos do filme sul-coreano Parasita. (Divulgação/Casa.com.br)

E, aqui, é preciso dar atenção especial ao banheiro. Lee afirma que ter o vaso sanitário acima do nível do resto da casa é relativamente comum. No cenário, no entanto, o vaso está o mais próximo possível do teto. É quase um templo do excremento. E, se o banheiro da família rica pode ser sintetizado numa banheira espaçosa, onde uma das personagens faz emergir sua melhor essência, o banheiro pobre tem a privada como o nível mais alto do que qualquer expectativa. É ali que o wi-fi roubado se conecta. É dali que sairá o liquido preto que desce da parte alta da cidade com o que sobrou de tudo, após a inundação. 

O bairro todo, no filme Parasita, teve que ser construído e reproduz com fidelidade regiões mais periféricas da cidade. (Divulgação/Casa.com.br)

O universo da coexistência é tão rico e cheio de simbologias nesse filme que o diretor, no release enviado à imprensa, fez o melhor resumo do que ele representa: “Uma comédia sem palhaços, uma tragédia sem vilão”. Apenas a comicidade e o drama do nosso cotidiano, tão cheio de contraste. O núcleo do viver, a casa ou a ausência dela, assim como a sua personificação são pontos fundamentais para que consigamos ampliar nossa empatia. E compreender os laços que conectam as nossas casas ao que somos… ou ao que queremos ser, na busca de um espaço ao Sol.

Para assistir ao trailer de Parasita (2019), confira o vídeo abaixo:

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