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Yoga para a alma

Em momentos de delicadeza extrema, quando a dor é profunda demais, o movimento suave do corpo, aliado às técnicas de respiração e meditação, ajuda a cicatrizar a tristeza

Por Texto: Cristiana Felippe e Silva
Atualizado em 20 dez 2016, 21h08 - Publicado em 28 abr 2014, 19h41
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Um telefonema no meio da madrugada roubou o sorriso de Lélia Aquino. Confundido com um suposto traficante, seu marido havia sido assassinado por policiais em São Paulo. Com a notícia aterradora, tinha início um período de tristeza e dor profunda em que a publicitária, de 36 anos, não conseguia mais dormir – quando acontecia de pegar no sono, o descanso era interrompido por pesadelos –, e só era capaz de engolir líquidos e sopas. A saída dessa interminável noite escura só começou quando, levada por amigos e familiares, buscou a ajuda de uma terapeuta tibetana e um curso de ioga. Um dos primeiros passos foi aprender a praticar diariamente, por 40 dias, a saudação ao sol, um conjunto de ioga para a alma 12 posturas (ássanas). No início, Lélia só chorava – as cenas de dor voltavam como num filme que se repetia com a imensa saudade do companheiro –, mas algo a fazia continuar. Algum alívio começava a se insinuar. Depois de 24 meses de muita persistência, prática e tratamentos (inclusive florais de Bach para minimizar a angústia), as lembranças ainda trazem tristeza, mas já não são o foco de tudo. Hoje, Lélia se sente mais confiante no trabalho, voltou a esboçar o sorriso que lhe era característico e, ao lado do namorado, ensaia alguns planos para o futuro. “Começo a me permitir ver alguma luz”, diz.

As marcas de um trauma por certo são fortes demais para serem apagadas. Uma em cada dez pes soas não consegue ir adiante e sucumbe aos efeitos do estresse pós-traumático. Nesses casos, além dos tratamentos convencionais (medicações e psicoterapia), é preciso um outro tipo de ajuda. A ioga, com a combinação de filosofia, posturas, meditação e exercícios de respiração, tudo indica, pode libertar a mente do episódio da dor e contribuir na recuperação de vidas que sofreram perdas, violência, acidentes e catástrofes.

Uma experiência norte-americana demonstrou essa relação. Em 2013, pesquisadores da Universidade de Wisconsin, nos Estados Unidos, divulgaram que técnicas de ioga têm trazido bons resultados para veteranos das guerras do Iraque e do Afeganistão. Em um experimento que acompanhou os ex-combatentes durante uma semana de prática, notou-se a diminuição dos níveis de estresse e dos sintomas pós-traumáticos (pesadelos, problemas de sono, memórias angustiantes recorrentes e dificuldade de se conectar com as outras pessoas). Um ano depois, muitos relataram sentir como se tivessem voltado à vida depois de longo período de ausência. “Resolvi estudar o assunto devido à alta incidência de suicídios entre soldados veteranos norte-americanos. A medicação e a psicoterapia tradicionais só aliviam os sintomas de metade deles”, conta Emma Seppala, diretora associada do Centro de Pesquisa e Educação para Compaixão e Altruísmo, da Stanford University School of Medicine (Faculdade de Medicina da Universidade de Stanford). “Como esperado, a ioga acabou afetando o sistema nervoso desses pacientes, tranquilizou-os, e ajudou até alguns casos em que a medicação sozinha não estava trazendo respostas”, revela a pesquisadora, adepta da prática. Com a eficácia do programa, alguns soldados viraram instrutores do projeto Welcome Home Troops (Bem-vindas as tropas para casa), que resultou no premiado vídeo Free Mind (Mente livre), onde é possível vê-los sorrindo, falando das próprias experiências e, sim, em sessões coletivas de ioga. Na Indonésia, após o tsunami de 2004, vários pescadores não conseguiam mais se aproximar do mar para exercer seu ofício. Segundo a instrutora da instituição internacional Arte de Viver, a guru indiana Rajshree Patel, com o programa de alívio do trauma oferecido pelos voluntários da organização, aos poucos as vítimas puderam superar o sofrimento e retornar ao trabalho. O projeto inclui sudarshankryia yoga (com práticas de cerca de meia hora diária). O mesmo foi aplicado no tratamento das vítimas do furacão Katrina, que atingiu Nova Orleans em 2005.

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Entendimento

Descritas por muitos como uma espécie de carimbo que fica para sempre no corpo e na mente, as lembranças dolorosas insistem em vir à tona mesmo quando se faz um tremendo esforço para esquecê-las e seguir adiante. A instrutora Rajshree, que visitou São Paulo em dezembro, explica que “o trauma é sempre ver apenas a mancha em uma roupa branca” e o incômodo com a lembrança só reforça esse padrão, tornando o sofrimento cada vez maior. “O que a ioga faz é trazer a consciência de que você não é só a mancha. Ela ajuda a ver a roupa toda novamente. A respiração e a meditação são como o processo de lavagem e secagem dessa roupa, trazendo a sensação de limpeza e frescor para a vida.”

Esses efeitos positivos também estão relacionados à filosofia que, segundo o Bhagavad Gita (livro indiano sagrado do século 4 a.C.), estimula o equilíbrio da mente (desapego de emoções negativas com perseverança), a habilidade na ação (manter o foco para desenvolver virtudes) e o rompimento do elo com a dor (libertando-se do sofrimento causado pelo corpo e pela mente).

O psiquiatra Marcelo Feijó, especialista do Programa de Atendimento a Vítimas de Violência e Estresse da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), explica que, após um evento extremo, a pessoa se sente em permanente estado de alerta, como se corresse sempre o mesmo risco, ao relembrar as emoções e cenas. “As reações variam para cada indivíduo de acordo com o seu organismo, estrutura e histórico de vida, mas uma experiência negativa desse porte pode provocar uma descarga constante de adrenalina e cortisol”, diz. Em grande quantidade, esses hormônios acabam prejudicando a imunidade, o metabolismo e podem levar a lesões cerebrais. Numa livre comparação, seria como criar um machucado da dor sentida. Ao promover maior conexão entre corpo, mente e alma, por meio das posturas, da meditação e respiração, a ioga seria uma forma alternativa de reparar o dano, a ferida emocional. “A prática reduz o cortisol, diminui o cansaço e melhora o sono”, diz Marcelo Feijó. Também regula os batimentos cardíacos e aumenta a capacidade respiratória. “Orientadas por equipes multidisciplinares, que incluem o tratamento médico tradicional, as vítimas começam a melhorar em torno de seis meses a um ano de prática”, estima o especialista da Unifesp.

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Renascimento

Toda vez que um evento inesperado muito estressante rompe a noção de segurança de uma pessoa, ela se torna vulnerável e impotente. Não é preciso ser uma catástrofe mundial para isso. Às vezes, uma tristeza particular como uma separação afetiva ou uma demissão pode detonar o processo. Foi o caso do advogado Renato Oliveira, de 32 anos. Ao momento emocional turbulento no trabalho, juntou-se o susto do rompimento amoroso e ele “perdeu o chão”. O estado de choque preocupava amigos e familiares, que temiam até por sua integridade física e o obrigaram a buscar tratamento e ajuda. “Comecei a achar que tudo estava errado: profissão, família, amizades e minha única vontade era jogar tudo para o alto”, diz.

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Por indicação de uma amiga, depois de muita relutância, acabou buscando o caminho da ioga, que aos poucos foi dando suporte para que ele superasse o conflito. “Senti melhoras a partir do quarto dia de prática, quando de um jeito meio sutil ainda passei a sofrer um pouco menos. A minha visão das coisas mudou: antes, achava que todos os problemas eram causados pelos outros, pelo externo, mas percebi que a vida pode ser mais leve e tranquila com base no nosso jeito de lidar com os problemas”, afirma. Era como se o advogado tivesse que sentir a maior dor do mundo, bater com os pés no fundo do poço da autoestima, para, então, ter certeza de que nada mais poderia abalá-lo de maneira tão forte. Além de ser feliz seguindo a mesma carreira, Renato afirma ter muito mais disposição para trabalhar e hoje é ainda instrutor voluntário da prática que o ajudou a reerguer-se, tamanha a crença de que a ioga muda o corpo e a mente. “Passei por outros problemas e rompimentos amorosos depois, mas de uma forma muito mais madura e sem me deixar abalar tanto, porque faz parte da vida”, afirma ele, que ainda contabiliza menos crises de sinusite e resfriados do que anos atrás. “Não se apaga a lembrança de um trauma, mas é possível elaborar o que aconteceu. Superar o drama traz a possibilidade de novas perspectivas para a vida”, observa o médico Marcelo Feijó.

Para a bióloga Elisa H. Kozasa, pesquisadora do departamento de psicobiologia da Unifesp e do Instituto do Cérebro do Hospital Albert Einstein, ambos em São Paulo, faltam mais estudos relacionando a ioga ao tratamento específico do estresse pós-traumático, mas sabe-se que os ássanas ajudam a desenvolver o foco, a concentração, e favorecem o relaxamento. “A pessoa aprende novos referenciais e passa a ter um estado de gentileza com o próprio corpo e a mente”, diz ela. É um complemento ao tratamento médico e psicológico. “Em muitos casos, a medicação é importante, pelo menos no início, porque a pessoa está tão abalada que não tem condições nem de começar a ioga, já que não consegue fazer o básico como comer e dormir adequadamente”, pondera Elisa. É o médico quem melhor poderá avaliar o momento correto de usar a ioga como coadjuvante do tratamento.

A especialista frisa ainda que a ioga não é mágica e que a prática tem melhor efeito com disciplina e regularidade, segundo as pesquisas. “A redução de sintomas de estresse bem como a da ansiedade e a melhora da atenção é observada em muitos estudos após cerca de oito semanas de treinamento diário”, diz Elisa.

O poder renovador da ioga nos casos de perdas, talvez explique por que essa prática é associada entre os hindus ao deus Shiva, que tinha a habilidade de destruir para depois reerguer algo novo. “Ganhamos mais energia e entusiasmo, desvinculamos os padrões emocionais do evento, expelimos as toxinas físicas e emocionais e nos tornamos conscientes de cada momento, dando a oportunidade de superar o passado e criar uma nova realidade com mais clareza, energia, paz e felicidade”, afirma Rajshree. Palavras de quem pratica há 30 anos, sempre com o mesmo sorriso no rosto.

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