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“Ser ético exercita o espírito”, diz Clóvis de Barros Filho

Zelar pela convivência pressupõe frear impulsos individualistas em prol do bem coletivo, conduta essencial para viver a espiritualidade.

Por Texto: Raphaela de Campos Mello | Ilustração: Zé Otávio
Atualizado em 21 dez 2016, 00h21 - Publicado em 5 ago 2014, 17h10
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Não é preciso ter fé nem seguir alguma religião para desenvolver a espiritualidade. Basta ser ético no dia a dia. Assim entende o professor Clóvis de Barros Filho, especialista em ética, disciplina que leciona na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Segundo ele, formado em direito e em jornalismo e autor de vários livros, entre eles Ética e Vergonha na Cara (ed. Papirus 7 Mares), escrito em parceria com o filósofo e educador Mario Sergio Cortella, sem tal saber seríamos animais submissos aos nossos instintos. Incapazes de conviver. Ao considerar o próximo, esse conhecimento se torna uma forma de exercitar o espírito e de aprimorar a conduta humana. O bem comum, aliás, remete a outro pilar da trajetória do filósofo: Jesus Cristo, seu mestre espiritual. Exemplo que nos legou a exigente tarefa de amar uns aos outros para além dos nossos desejos narcisistas. Nesse ponto de intersecção, a filosofia e os ensinamentos cristãos apontam para o mesmo horizonte: a vida digna de ser vivida. Clóvis desacredita numa força criadora que regeria o Universo, mas está certo de que a existência pode ser maravilhosa se servida dos três tipos de amor – o desejo de Platão, a alegria de Espinoza e a ágape de Cristo. “Isso significa buscar coisas que se quer e não se tem, conseguir se alegrar com aquilo que já se tem e perceber que não se pode ser totalmente alegre sozinho. Tem de haver pessoas com quem compartilhar e ainda zelar pela alegria delas”, diz. Na contramão das receitas de autoajuda dispara: “Acredito que a felicidade seja um instante de vida que gostaríamos que durasse um pouco mais”. É com o mesmo bom humor que ele fala a seguir.

O que é espiritualidade para você?

É toda forma de exercício da mente que nos leva a ir além do estritamente experimentado no mundo para o que é absoluto. Ela é uma costura entre duas dimensões que nos é completamente necessária. Nenhum humano se contenta em viver no estrito particular, porque, senão, teria se convertido num animal. É por isso que a espiritualidade com ou sem Deus sempre fez parte da minha vida.

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Como você se relaciona com esse aspecto da existência?

Sempre vi em Jesus Cristo um mestre. Entretanto, tenho muito mais apreço pelos valores cristãos que experimento no cotidiano do que propriamente pela certeza num deus criador de tudo e garantidor de uma vida após a morte. Comungo com Jesus Cristo pelos 33 anos de vida, porque a meu ver ele morreu na cruz e, sendo assim, ele se aproxima muito de mim. Se ele de fato ressuscitou, é um mestre espiritual que se distancia porque eu não terei a mesma prerrogativa. Prefiro vê-lo assim, mais parecido comigo. E, nesse sentido, sou um imenso admirador dele.

Associar a ética ao correto e vice-versa é uma leitura muito simplista?

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No senso comum, entende-se a ética como uma espécie de tabela onde se teria todas as condutas humanas em duas colunas: pode e não pode fazer. O primeiro problema é se perguntar com base em quais princípios aquelas condutas foram classificadas. O segundo é que as situações de vida se alteram a cada minuto, num ineditismo fulminante. No momento em que você terminou a tabela, ela já está caduca e, claro, você tem de enfrentar questões inéditas. Portanto, mais do que o respeito a uma tabela, a ética precisa ser a disposição para se discutir o que queremos e o que não queremos respeitar. Ela é menos o respeito a verdades estabelecidas no passado e mais uma abertura para o devir, para a convivência no futuro.

Sem o freio da ética, o que seria da sociedade?

Seria o reino animal, onde não existe ética. Cada ser vivente é regido pelos seus apetites. A ética tenta viabilizar um meio de estarmos todos juntos para além das aspirações particulares. Do contrário, vence o desejo do mais forte. Em sociedades eticamente desestruturadas, a tendência a abrir mão dos impulsos individuais em nome do bem comum é menor.

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Já a moral diz respeito ao que faríamos mesmo protegidos do olhar castrador dos outros?

A moral é um diálogo do eu com o eu. Aquilo que você se impõe e não se autoriza e, portanto, não tem a menor importância se há vigilância ou não. É a capacidade de transcender aos próprios instintos não por medo do olhar do outro, mas por você mesmo. A proliferação de radares de trânsito, por exemplo, se deve à falta de formação moral. Se todos tivéssemos condição de imprimir a velocidade adequada aos veículos, não precisaríamos deles. Logo, quanto mais repressão, menos moral.

Eros é a busca do que faz falta. Moral é o que se faz com esse desejo. E a espiritualidade é…

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Eros é o desejo que se impõe, uma manifestação do corpo. O sujeito está pleno de anseios, mas, como não pode satisfazê-los, os retira da consciência e os substitui por outros, a chamada sublimação. A espiritualidade vai além do caso particular. Ela passa de uma moral de primeira ordem para uma moral de segunda ordem, que é uma reflexão genérica sobre o agir humano. Não se trata mais de discutir se o sujeito pode dar vazão ao desejo, e sim debater em que condições genericamente alguém pode ou não satisfazer seus desejos. Nesse sentido, a espiritualidade é o andar de cima da moral.

O ser humano é totalmente refém de suas escolhas?

Vivemos numa sociedade contaminada por uma forte ideologia de que o valor de nossas condutas tem a ver com o que resulta delas. O primeiro problema é que nem sempre o que você quer, o que a empresa quer e a sociedade espera de você é eticamente bom. Ou não é bom o que ela espera ou não é bom o que você tem de fazer para alcançar o que ela espera. Outro problema de se pensar assim é que nem sempre os resultados alcançados se devem exclusivamente à conduta do agente. Não só não controlamos como desconhecemos as variáveis que fazem muitas coisas acontecerem.

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Por que fórmulas como “dez receitas para ser feliz” seduzem com tanta facilidade?

Porque nossa liberdade fundamental nos angustia. A autoajuda é uma forma entre outras de redução da angústia. Se tenho 360 graus de alternativas, estou imobilizado porque até eu passar todas em revista não saí do lugar. O sofrimento vem antes e depois da escolha, porque, depois de feita, você fica pensando em todas as alternativas preteridas. Além disso, você nunca sente tristeza pelas vidas que não viveu. Por isso, o risco de se arrepender é imenso. Então, muitos recorrem a mecanismos simplificadores da existência.

Como conviver com a angústia da incerteza?

Você pode assumir a liberdade e a angústia ou recorrer a mecanismos simplificadores e, portanto, se aproximar progressivamente de um gato. O gato não sente aflição porque ele não escolhe. Se pudéssemos resumir o existencialismo (escola filosófica dos séculos 19 e 20) a uma frase, diríamos que a existência precede a essência. Tomemos como exemplo os objetos, que nascem a partir de uma ideia – a essência vem antes da existência. No nosso caso é o contrário. Estamos no mundo, segundo o existencialismo, e sem ter uma essência a nos reportar. Portanto, nossa vida está à mercê do que fizermos dela. Logo, a existência precede a essência. Você vive primeiro e depois descobre quem é. Em contrapartida, as tradições espiritualistas partem de uma premissa de natureza humana porque o seu objetivo é negar a angústia. Elas falam que se você está angustiado isso se deve à ignorância acerca da sua essência. Já o existencialismo decreta que, se você está angustiado, é assim mesmo. Como não há essência nenhuma, conviva com isso.

Os ensinamentos de Cristo o ajudam nesse sentido?

A filosofia de Cristo nos aponta para uma forma de salvação tranquilizadora, mas que coloca como condição para isso o amor de uns pelos outros. Sem dúvida, uma condição exigente. Afinal, ela nos cobra ir além do nosso umbigo e dos próprios desejos e entender que o sentido maior da vida está na alegria do outro.

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