Rubem Alves: Meditação de um poeta

"Quando te vi amei-te já muito antes. Tornei a encontrar-te quando te achei." Essa é a mais bela declaração de amor que conheço. Ela indica o lugar obscuro onde o amor brota.

Por Rubem Alves
Atualizado em 21 dez 2016, 00h02 - Publicado em 4 abr 2013, 16h46
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Ela estava assentada ligeiramente inclinada para frente, as mãos apoiadas sobre as coxas. Olhou-o com olhos tranqüilos e com voz baixa disse: “Meu nome é Heloisa“. Tinha maçãs salientes e um rosto de menina. Uma beleza singela e despida, sem nenhum adorno, irradiava do seu corpo.

Ao vê-la ele sentiu uma súbita alteração no seu peito, coisa que nunca havia sentido. Como se tivesse sido instantaneamente enfeitiçado por aquele rosto. Percebeu que estava perdido. Ele a amou para sempre desde o momento em que a viu.

Faz muito que tento entender essa cena. Embora saiba que a razão lógica não conhece as razões do coração, embora Drummond tenha escrito um poema com o título As Sem Razões do Amor, embora o próprio santo Agostinho não soubesse o que ele amava quando amava, sou fascinado pelo mistério desse súbito encantamento.

Feitiço. O apaixonado está possuído por uma imagem. Qual é a origem desse sentimento que fisicamente comprime o lado esquerdo do seu peito?

O poeta medita: “Quando te vi…“ Eu nunca a havia visto. Não havia antecedentes que tivessem preparado aquele momento. Nada sabia sobre ela. Dela, naquele momento, a única coisa que eu tinha era a sua imagem: eu a vi… Como eu nada sabia sobre ela, ela era destituída de substância. Dela, eu só tinha aquilo que meus olhos me ofereciam: uma imagem.

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Meus olhos pararam sobre o seu rosto e o tocaram imperceptivelmente com dedos de luz. Amei-a com os meus olhos. Naquele momento eu não sabia, mas ela sentira o mesmo que eu senti.

Eu já havia visto muitas mulheres. Muitas delas mais bonitas. Mas a sua beleza nada fez com o meu corpo. Eu não a amei por ser mais bonita que as outras. Não é a beleza que produz o fascínio. Se o amor fosse produzido pela beleza eu teria me apaixonado por muitas mulheres.

Então, o que foi que me enfeitiçou? Não sei. Amei sem saber por quê. Faço a mesma pergunta que santo Agostinho fez: “O que é que amo quando te amo?“ O que foi que amei quando a vi?

“Quando te vi amei-te já muito antes…“ A estranha forma sintática do verso nos leva para a região onde se encontram as fontes da paixão: um outro mundo, um tempo anterior ao agora.

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Os poetas têm intuições desse tempo. Talvez porque eles mesmos não saibam explicar os seus poemas cuja origem é tão misteriosa quanto a origem do amor. De onde eles vêm?

Fernando Pessoa se perguntava: “Quem sabe, quem sabe, se não parti outrora, antes de mim, de uma outra espécie de porto?“ É possível que a imagem que encanta tenha nascido no mesmo tempo e no mesmo lugar onde nascem os poemas…

“Nasci para ti antes de haver o mundo. Não há cousa feliz ou hora alegre que eu tenha tido pela vida fora, que não fosse porque te previa… Tornei a achar-te quando te encontrei…“

“Antes de nascer tu eras minha. Quando nasci, perdi-te. E agora, você à minha frente, sua imagem me levou para esse passado misterioso onde éramos um do outro num amor imperturbável.“

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As razões do encantamento se encontram nesse tempo anterior. Era lá que ela vivia adormecida. Eu não a via. Estava invisível nas brumas. Mas ouvi a sua respiração.

A experiência do amor – quem sabe a palavra mais certa seria “paixão“ – existe dentro dessa bolha mágica, fechada sobre si mesma, que subitamente nos extrai do presente. É uma emoção em estado bruto, irresistível, que se apossa da alma, a domina e se basta. “O nosso amor vai ser assim, eu pra você, você pra mim.“ Quem escreveu esses versos sabia que a bolha da paixão é feita por dois olhares que se contemplam encantados e se fecham sobre si mesmos.

Octavio Paz descreveu num parágrafo de rara beleza a magia desse tempo anterior: “Todos os dias atravessamos a mesma rua ou o mesmo jardim; todas as tardes nossos olhos batem no mesmo muro avermelhado, feito de tijolos e tempo urbano. De repente, num dia qualquer, a rua dá para outro mundo, o jardim acaba de nascer, o muro fatigado se cobre de signos. Nunca os tínhamos visto e agora ficamos espantados por eles serem assim: tanto e tão esmagadoramente reais. Sua própria realidade compacta nos faz duvidar: são assim as coisas ou são de outro modo? Não, isso que estamos vendo pela primeira vez, já havíamos visto antes. Em algum lugar, no qual nunca estivemos, já estavam o muro, a rua, o jardim. E à surpresa segue-se a nostalgia. Parece que nos recordamos e quereríamos voltar para lá, para esse lugar onde as coisas são sempre assim, banhadas por uma luz antiquíssima e que ao mesmo tempo acaba de nascer. Nós também somos de lá. Um sopro nos golpeia a fronte. Estamos encantados, suspensos no meio da tarde imóvel. Adivinhamos que somos de outro mundo“.

É lá que nasce o amor: nesse lugar onde nunca estivemos.

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Rubem Alves nasceu no interior de Minas Gerais e é escritor, pedagogo, teólogo e psicanalista.

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