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Rubem Alves: A ternura

Deve-se à paixão a contemplação da beleza. O olhar de quem ama torna belo o objeto amado e, assim, um e outro são mutuamente cativados. O universo de ambos se alegra e se amplia

Por Rubem Alves
Atualizado em 21 dez 2016, 00h02 - Publicado em 4 abr 2013, 16h43
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Soeren Kierkegaard definiu a pureza de coração como “desejar uma só coisa”. Puro é aquilo em que não há misturas, é uma coisa só, um único desejo. Assim é a paixão: pura. Porque ela se alimenta de uma coisa só: a imagem da pessoa amada.

Não se trata de uma imagem mais bonita que as outras. É uma única imagem que apaga todas as outras. O apaixonado só pensa na pessoa amada. Em todos os momentos, sempre. Os assuntos que fazem as conversas do cotidiano não o interessam. Bem que ele gostaria de falar sobre o seu amor. Mas ele se cala, sabendo que os outros ririam dele.

Camões, no episódio de Inês de Castro, escreveu que ela caminhava “dizendo aos campos e às ervinhas o nome que no peito escrito tinhas…”. Se não havia ouvidos humanos a quem pudesse dizer o nome que tinha gravado no peito, que as árvores, a relva e as pedras fossem depositárias do seu segredo – um único nome.

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A raposa pediu que o Pequeno Príncipe a cativasse.

“O que é cativar?”, perguntou então o Pequeno Príncipe.

“Cativar é assim”, explicou a raposa. “Eu me assento lá longe e você se assenta aqui. Eu olho para você e você olha para mim. No dia seguinte nos assentamos mais perto. Eu olho para você e você olha para mim. Até que nos assentamos juntos. Se você me cativar eu pensarei em você, conhecerei o ruído dos seus passos e sairei da minha toca quando você chegar…”

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Aconteceu então que o Pequeno Príncipe cativou a raposa. O tempo passou e chegou um dia em que ele disse à raposa:

“Preciso ir…”

A raposa disse: “Vou chorar…”

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“Não é culpa minha. Eu não queria cativar você. E agora você vai chorar… O que é que você ganhou com isso?”

“Ganhei os campos de trigo”, retrucou a raposa para aquele pequeno.

“Como assim?”, perguntou o Pequeno Príncipe sem entender.

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“Eu sou uma raposa. Eu como galinhas, não como trigo. Os campos de trigo não me comovem. Mas porque você me cativou eu amarei os campos de trigo. O seu cabelo é louro. Os campos de trigo são dourados. Assim, quando o vento bater nos campos de trigo eu me lembrarei de você e sorrirei…” O rosto do Pequeno Príncipe estava gravado no trigal. Mas isso só o apaixonado vê.

O amor começa quando colocamos uma metáfora poética no rosto da mulher amada. A paixão é uma experiência estética. Está ligada à contemplação da beleza. A mulher pela qual se está apaixonado é bela. Não é que ela seja bela. É o olhar apaixonado que a torna bela. Porque não vemos o que vemos, vemos o que somos. Uma mulher é bela quando nos vemos belos ao olhar nos seus olhos. Quem, ao olhar para uma mulher, pensa em sexo não é um apaixonado. Porque não está pensando no seu rosto.

O apaixonado sorri ao contemplar sua amada dormindo, sem tocá-la: o corpo de lado, o rosto sobre o travesseiro, de olhos fechados, o suave ressonar, a camisola suspensa deixando ver a calcinha: é uma imagem de paz, de tranqüilidade. E um momento de ternura. Há um desejo de acariciá-la, mas a mão se contém: nenhum movimento seu deverá interromper a beleza da cena. Nessa cena os impulsos sexuais estão proibidos.

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O sexo dos adolescentes e jovens nem precisa de um objeto que o excite. Ele se excita por si mesmo. O que se busca não é a experiência amorosa. É sobre esse sexo que Freud escreveu. Era o único que ele conhecia. Era o sexo que Tomaz, personagem de A Insustentável Leveza do Ser, fazia com suas namoradas. Tomaz não sentia ternura por suas amantes. Ele as usava. Não as amava. Mas uma delas protestava: “Não procuro o prazer, procuro a alegria…” Mas onde mora a alegria? Mora no rosto da mulher amada, nos seus olhos que dizem: “Como é bom que você existe…”

 

Rubem Alves nasceu no interior de Minas Ge­rais e é escritor, pedagogo, teólogo e psicanalista.

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