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Luz e sombra: reconheça os sentimentos ruins e pacifique-os

O que se esconde na penumbra que não conseguimos ver? Por que as trevas nos parecem tão assustadoras? Como encarar esse medo e integrar com o desconhecido?

Por Texto: Liane Alves | Foto: Erg Murzuq/Latinstock
Atualizado em 20 dez 2016, 21h35 - Publicado em 28 jun 2013, 15h47
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A foto de final de curso não poderia ser mais alegre: com um sorriso aberto no rosto, ali estavam reunidos os alunos de um curso de direito em seu dia de formatura, com a tradicional toga e o diploma nas mãos. Depois de cinco anos de esforços, os futuros advogados eternizavam sua alegria numa imagem para ser guardada como lembrança de um momento feliz. Porém, se a câmera pudesse capturar o que se passava nos corações de Mônica e Fernando, em lados opostos da fotografia, algo bem diferente seria revelado. Apaixonados e com data marcada para o casamento, tudo o que queriam era estar lado a lado naquele instante significativo de suas vidas. Mas não deu tempo. Como a posição dos alunos foi organizada rapidamente, Mônica acabou num canto aguardando a chegada de Fernando, enquanto ele não teve força para atravessar a confusão e ir até ela. Se fosse feita uma foto de seus sentimentos naquele instante, um caldeirão de emoções negativas borbulharia dentro deles. Fernando se sentia esquecido pela namorada e com a certeza de que ela não o amava tanto quanto ele, pois ela não se aproximou. Já Mônica estava com os olhos marejados de lágrimas e inconformada com a ausência do amado ao seu lado, depois de terem estudado tantas noites juntos. Naquele momento, por algo tão bobo eprosaico, ele teve gana de desmanchar o noivado por um avassalador sentimento de rejeição. E ela teve o mesmo ímpeto, por sentir-se traída em sua confiança e abandonada. Sem saber, os dois estavam completamente dominados por suas respectivas sombras. O inferno fervia dentro deles em labaredas.

O que é mal, ruim, negativo não está só fora. Na verdade, está principalmente dentro de nós. O drama que é descrito nos relatos bíblicos, como a queda dos anjos, quando Satanás é jogado no abismo e sofre como um cão pela perda do amor de Deus e da felicidade divina, acontece todos os dias em nossos corações. Por um momento, o mal toma conta de nossa alma e nos afastamos da alegria, da harmonia, da bondade e da paz. Isto é, nos afastamos do Amor, que é o nome secreto de Deus. Mas o que nos joga dentro desse mundo de conflitos e sofrimento? Teologicamente, é Satanás, o Diabo. É interessante notar que um dos adjetivos usados para descrevê-lo é simplesmente “O Perturbador”. Tudo anda bem e tranquilo, até que surge de repente aquele que perturba e nos empurra para o buraco do inferno. E seu modo de agir é desse jeito mesmo: rápido, traiçoeiro, inesperado. Quando vemos, estamos sofrendo sem ao menos perceber como fomos parar naquela situação dolorosa.

Outro de seus nomes é ainda mais sugestivo: “O Enganador”. Ele o faz pensar que algo é de uma forma, quando, na verdade, é de outra. Ele cria ilusões, como um grande mágico, e nos faz acreditar que elas são reais e que existem, quando tudo não passa de um truque. Se sua sombra ativa principalmente o ciúme, aparecerão várias situações em que essa emoção negativa se manifestará em você, porque é essa a lente pela qual você vê o mundo. Ela distorcerá tudo o que você vê, fazendo com que ache o que procura, mesmo que não seja real, exatamente porque uma das características da sombra é voltar a apresentar a questão de novo, e de novo, e de novo, até você resolvê-la. “As situações de ciúme, nesse caso, serão sempre recorrentes. Enquanto a questão original que aciona esse gatilho psicológico não for identificada sob a luz da consciência, o mesmo cenário, com poucas variações, vai se repetir”, explica Irene Cardotti, analista junguiana e psicoterapeuta bioenergética e sistêmica, de São Paulo. E o que poderia impedir essa reação tão automática e nos livrar da recorrência? “Reconhecer a sombra, integrá-la, admitir que você é ciumento e que sempre vai ter a tendência de procurar chifres em cabeça de cavalo, por exemplo. Ao reconhecer seu olhar torto e tendencioso na questão, quando a situação se apresentar de novo, ficará mais fácil se conter e pensar duas vezes antes de tomar uma decisão precipitada que poderá prejudicá-lo”, conclui Irene.

A palavra diabo vem da raiz latina diavolo, aquele que se divide em dois. Sob o domínio das sombras, eclode um diálogo interno frenético dentro de nós, que nos parte ao meio: “Por que ele fez isso?”, “Oque isso quer dizer?, “O que vai acontecer?”, “O que vou fazer de agora em diante”, e por aí vai. Ficamos divididos, jogados de um lado para outro, em meio a uma avalanche de perguntas que tentamos responder internamente. Aliás, a palavra diálogo também tem a mesma raiz, aquilo que é dual, uma fala entre duas partes. É essa divisão que nos racha em dois, a origem de nosso sofrimento.

Os budistas também usam a dualidade para descrever o samsara, o universo manifestado. Para eles, tudo tem uma única natureza, que é pura e compassiva. Quando o samsara se instala, porém, é criado o mundo dual, o mundo do conflito. No budismo, a grande razão de nosso sofrimento é a dualidade, de onde nascem a raiva, o apego e a ignorância (o desconhecimento de como as coisas realmente são). Ameditação nos concederia a possibilidade de trazer de volta nosso estado unificado natural. Com a luz do distanciamento que ela nos proporciona, vemos as labaredas dentro de nós, mas não nos queimamos,porque percebemos que não somos as chamas. E que uma parte de nós sempre permanece cristalina, compassiva, serena e presente.

O assalto da sombra

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“Psicologicamente, a sombra é uma emoção destrutiva que toma o peito de assalto. É muito difícil controlá-la se você não sabe que ela existe e que pode ameaçá-lo”, conta Irene Cardotti. A sombra chega avassaladora, vinda do inconsciente, e com ela perdemos a nitidez do pensamento e do julgamento, a consciência do que realmente está ocorrendo. Ou seja, perdemos a luz. E o que é a sombra dentro de nossa psique? Um fato ocorrido no passado, geralmente na infância,que turva e deforma a visão do que acontece no presente. “É como um véu, uma lente colorida, uma sombra mesmo, que altera o que vemos. Existem sombras antigas, primordiais, formadas no início de nossa existência, que podem modelar toda uma vida. Enquanto não admitidas, elas interferem inconscientemente em nossas decisões, destroem projetos, sabotam realizações e prejudicam pessoas”, diz Irene.Segundo o psicanalista suíço Carl Gustav Jung, a sombra aciona outro mecanismo interno poderoso da psique: o da projeção. “Projetamos no outro questões inconscientes, que na verdade pertencem a nós mesmos e que não foram resolvidas. Precisamos da luz da consciência, da claridade da razão, para vê-las atuando. Se soubermos como elas agem dentro de nós, elas perderão sua força e domínio”, garante Irene. Vamos conseguir voltar para o eixo e nos controlar. “É como um quarto escuro em que tropeçamos nas coisas que não vemos. Ao acender a luz, podemos enxergálas e não esbarrar mais nelas”, diz a psicoterapeuta.Ou, se esbarramos, vemos onde tocamos e conseguimos nos reequilibrar de novo sem cair no chão.

Outro detalhe que nos facilita identificar a projeção da sombra: ela provoca uma dor avassaladora, quase incontrolável, e muito maior que a situação que a detonou, como no caso da fotografia usado no iníciodeste texto. É um sofrimento desproporcional ao que realmente ocorreu. Por isso, quando perceber que é assaltado por uma dor, raiva, irritação ou depressão muito fortes, quase incontroláveis, muito maiores, inclusive, que a situação que a detonou, preste muita atenção:“É como pisar num calo. Dói muito mais do que um pisão num dedo normal, pois o que realmente machuca e nos transtorna é a dororiginal que está ali embutida”, diz Irene. Nessas horas, pergunte para si mesmo por que está sentindo tudo isso e veja se surge uma imagem em sua cabeça ou se vem uma lembrança de infância. Procure também prestar atenção nos sonhos que se repetem ou que tocam mais intensamente seus sentimentos nesse período. “A sombra, de alguma forma, sempre procura emergir da inconsciência para a consciência, é um movimento natural da psique. Em algum momento, sua origem vai se revelar”, avalia Irene. E, quando podermos olhá-la com mais luz, vamos ver que o motivo que a originou geralmente é bobo, infantil.

A sombra é grande, mas sua origem é pequena, às vezes é minúscula. Ao entendermos, por exemplo, que nosso ciúme doentio pode estar relacionado a um irmãozinho mais novo que nasceu e nos fez sentir abandonados pela mãe, é mais fácil acolher essa emoção quando ela surge no peito ao ver quem amamos despertando a atenção de outro alguém. Somos capazes de dizer para essa emoção que se avoluma dentro de nós: “Bem-vinda, eu a conheço há muitos anos e sei que você iria aparecer. Mas essa situação agora é outra, eu já cresci e não preciso mais me sentir tão ameaçado com a presença de outra pessoa perto do ser que eu amo”. Saberemos olhar para essa emoção, acolhê-la e integrá-la. Às vezes é uma boa terapia que nos ajuda a chegar até esse ponto, às vezes o autoconhecimento pode ajudar, ou até um amigo mais sábio.

Nesse ponto, teremos mais condições de avaliar se o ciúme possui razões reais de ser ou não, se estamos projetando o que aconteceu no passado no presente, e outras reflexões úteis. Dizia o psicanalista Carl Jung que é melhor ser inteiro do que ser bom. Em outras palavras, é preferível assumir nosso lado B, nossa inveja, cobiça ou avidez, por exemplo, quando essas emoções se manifestam em nós, do que sentir vergonha, jogá-las debaixo do tapete e ser dominados por elas. Ao reconhecer nosso lado B, nosso mecanismo de projeção se interrompe ou, pelo menos, não se torna tão automático. Há um certo espaço para negociação, e para se perguntar: “Será que não estou exagerando?”, “Será que o que estou imaginando é real?”, “O que estou projetando do meu passado nesta situação presente?”. É isso. Voltar para o centro da questão e para a razão diante de uma tempestade emocional deflagrada pela sombra geralmente evita que a gente seja injusto com alguém e que faça besteira.

Pega no Pulo

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Até agora, já vimos algumas importantes características da sombra: ela surge instantaneamente, distorce por completo a forma daquilo que é projetado e aumenta de modo descomunal o tamanho do objeto que a provoca. Em outras palavras, acontece exatamente o que uma sombra também faz no plano físico. Esse é o jeito que ela tem de alterar a realidade e que nos dá uma rasteira e nos tira do equilíbrio. Tambémobservamos que a sombra detona emoções fortes ligadas a algum momento de nosso passado que podem nos descontrolar no presente. Mas algunspsicanalistas e terapeutas contemporâneos procuram ressaltar que a sombra também tem um lado positivo. É o caso de Debbie Ford, autora americana que assinou livros de grande sucesso, entre eles Como Entender o Efeito Sombra em Sua Vida (Cultrix). “Quando passamos a compreender que somos bons e ruins, luz e escuridão, fortes e fracos, brilhantes e muitas vezes totalmente obtusos, começamos o profundoprocesso de cura da cisão interior, que invariavelmente ocorre à maioria de nós, em algum momento da vida”, escreveu Debbie no livro recém-lançado. “Conquistamos a paz, não aprendendo novos truques ou mais estratégias para esconder nossas imperfeições, mas aceitando um pouco mais nossas inseguranças, vergonha, medos e vulnerabilidades”, diz ela. Isto é, quando eliminamos a divisão entre luz e sombra em nossa alma e não somos mais inconscientemente dominados por nosso lado obscuro, obtemos recursos para fazer escolhas melhores e noscomportar de maneira mais justa e íntegra.

Debbie se vale da sabedoria indígena norte-americana para falar dos dois lobos que habitam dentro de nós. Um é branco, pacífico, bom e generoso, e o outro é preto, egoísta, descontente, zangado, medroso,ciumento e invejoso, só para fazer um resumo. Mas, se o lobo negro é tudo isso, também possui muitas qualidades. “Ele é inteligente, astuto e capaz dos pensamentos e estratégias mais tortuosos, o que é muito importante em tempos de guerra. Seus sentidos são tão aguçados que só aqueles que olham na escuridão podem apreciar. Em meio a um ataque, o lobo negro poderia ser o nosso melhor aliado”, conta Debbie. Além disso, é feroz, determinado, forte e difícil de ser subjugado.

A chave da sabedoria, segundo a escritora, está em saber utilizar conscientemente os recursos que cada um dos dois lobos tem a oferecer, em estar acima de seu jogo de forças e de sua luta paradisputar nossa atenção. “Dessa maneira, não haverá guerra entre eles, e assim se pode ouvir a voz da sabedoria profunda e saber qual dos dois pode nos ajudar melhor em cada circunstância.” Debbie ainda admite que foi o lobo preto que a fez brigar com as editoras pela publicação de seu livro, escolher a melhor delas para editá-lo e usar diferentes estratégias para divulgar seu conteúdo. Também foi o sofrimento provocado pelo lobo negro que a fez buscar a cura de suas emoções. “Não foi o meu eu bondoso, mas a pessoa má dentro de mim, que me levou a curar minhas feridas emocionais e acabou fazendo com que minha carreira deslanchasse”, escreveu ela. “Não foi meuraciocínio rápido ou um suposto brilhantismo que me levou a transformar a vida de centenas de milhares de pessoas, mas a sabedoria que adquiri ao integrar minha raiva, descontentamento, vergonha, medo e inseguranças.” Ao revelá-las publicamente, Debbie se libertou de seu domínio.Falhas e imperfeições precisam ser apenas olhadas de frente, integradas e admitidas. Elas nos tornam mais humanos e capazes de compreender os outros. Se jogarmos mais luz em nosso lado sombra, e iluminá-lo, ele nos deixará de fazer mal. Poderemos direcionar sua força, competência e inteligência para aquilo que é bom e benéfico para todos. “Seria um erro jogar a sombra na lata de lixo”, assegura Debbie.

 

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