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Fé: três histórias que mostram como ela continua firme e forte

Num mundo cada vez mais personalizado, a espiritualidade ganha contornos fluidos e ecléticos, como a própria busca por autoconhecimento.

Por Texto Raphaela de C. Mello | Direção de arte Camilla Frisoni Sola | Design Luciana Giammarino | Fotos Iara Venanzi | Reportagem fotográfica Carla Zullo
Atualizado em 20 dez 2016, 20h54 - Publicado em 1 set 2012, 18h31
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A fé é exímia peregrina. Passeia pelas épocas refletindo os anseios e as necessidades daqueles que vivem em dado tempo e em certa cultura. As instituições religiosas sobrevivem como podem ao correr dos séculos, mas não saem ilesas da revolução das mentalidades, sobretudo a que agitou o mundo nos últimos 50 anos. Nas bandas orientais, o peso da tradição ainda dita muita coisa, do vestuário ao casamento, passando pela produção cultural. Aqui no Ocidente, ao contrário, mais e mais gente está se descolando dos dogmas impostos de fora para dentro. No melhor espírito “faça você mesmo”, preferem pinçar conceitos aqui e acolá e fabricar sua própria espiritualidade, sem qualquer compromisso de longo prazo, a não ser com o sentido de verdade interior, aberto a reformulações periódicas, como dita a cartilha pós-moderna.

Os números da fé hoje

 

Não há mistério nisso. O avanço do individualismo, atrelado aos apelos da sociedade de consumo, afetou a maneira como grande parte das pessoas se relaciona com o sagrado. “Os indivíduos estão se tornando menos religiosos e mais espirituais”, aponta o sociólogo Dario Caldas, do Observatório de Sinais, em São Paulo. “Em face da crise das instituições tradicionais, seja a Igreja, o estado, seja o partido, as identidades se fragmentam à medida que os indivíduos passam a nutrir identificações passageiras ao longo da vida”, afirma ele. A identidade, nesse sentido, deixa de ser um núcleo rígido e imutável para assumir a transitoriedade do experimentalismo, das mudanças internas que se processam por meio das experiências pessoais. Ninguém, nos dias de hoje, precisa nascer e morrer sob a guarida de uma só crença. Em outras palavras, a espiritualidade faz sentido para o homem contemporâneo desde que pautada por uma escala personalizada de valores. “A palavra de ordem é afinidade”, sintetiza Caldas.

 

O último censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), referente ao ano de 2010, divulgado no final de junho, aponta o aumento expressivo do número de pessoas sem religião nos últimos 50 anos: de 0,6% para 8%, ou seja, 15,3 milhões de indivíduos. Desses, cerca de 615 mil são ateus e 124 mil, agnósticos. O restante se ampara na espiritualidade livre de rótulos. “É uma faixa significativa da população brasileira”, enfatiza o sociólogo. A dimensão sacra, entretanto, não abandona o altar, onde depositamos nossas crenças, seja na vida, no outro, na força interior, seja num grupo eclético de divindades que tocam nosso coração. A relação com a transcendência só muda de figura. Essa remodelação comporta ainda um paradoxo, o que o filósofo francês Luc Ferry chama de espiritualidade laica, humanismo secular ou espiritualidade sem fé. Segundo o intelectual, a vivência prática dos valores humanistas – só ela capaz de estabelecer conexões significativas entre o homem e seus semelhantes – configura a melhor expressão do sagrado na Terra. Quem nutre essa veia, que não necessariamente se alia à devoção a um deus dotado de barba e túnica, é o amor, o qual nos impele a construir um mundo melhor para nossos filhos e, portanto, para as gerações futuras. “Hoje, no Ocidente, ninguém arrisca a própria vida para defender um deus, uma pátria ou um ideal de revolução. Mas vale a pena se arriscar para defender aqueles que amamos”, escreve Ferry no livro A Revolução do Amor – Por uma Espiritualidade Laica (Objetiva). Seguindo o pensamento humanista secular, ele arremata: “É o amor que dá sentido a nossa existência”.

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A fé e o sincretismo religioso

 

Para Caldas, o Brasil tem lá suas peculiaridades. Carregamos historicamente a influência do sincretismo religioso, o que torna a presença do divino no cotidiano tão importante quanto arroz e feijão no prato. “Podemos não frequentar cultos, mas criamos nossos próprios rituais, construímos altares em casa, espaços sensoriais resultantes de um sincretismo emocional muito particular”, define o sociólogo. Pode ser que a fé autocentrada, por mais bem intencionada, acabe resvalando no narcisismo. Acontece. Mas a contrapartida edificante da espiritualidade corrente é que, ao se voltar para sua essência por meio do autoconhecimento, o homem contemporâneo se torna melhor cidadão do mundo. “O individualismo espiritual tem como valores humanistas a tolerância, a convivência pacífica, a busca pelo melhor de si”, lista Caldas.

 

No púlpito da psicologia, a fé também reza o terço da pluralidade. Ou seja, para se manifestar, ela não precisa ser subsidiada por preceitos religiosos. Um cético pode perfeitamente acreditar que o amanhã será melhor que o dia de hoje e, dessa perspectiva, extrair força para levantar da cama e superar as adversidades. A fé, inclusive, é cientificamente reconhecida como um reforço de inestimável valia durante processos de superação. Centenas de pesquisas mostram que pessoas dotadas de algum tipo de espiritualidade superam mais facilmente as prensas da vida em comparação aos descrentes. O que faz toda a diferença nas horas difíceis é a capacidade de extrair aprendizado e sentido de experiências traumáticas ou mesmo de olhar o porvir com esperança, segundo Julio Peres, psicólogo clínico, doutor em neurociências e comportamento pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), pós-doutor pelo Centro de Espiritualidade e Mente da Universidade Pensilvânia, nos Estados Unidos, e autor de Trauma e Superação (Roca). “Qualquer pessoa pode aprender a resgatar a confiança em si mesmo e no mundo, desde que faça uma aliança de aprendizado com o evento doloroso, extraindo um significado maior para sua existência, a despeito da religiosidade”, assegura o especialista, que adensa sua experiência profissional na proposição: “Se consigo absorver o aprendizado, consigo dissolver o sofrimento”.

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Acostumado a ver seus pacientes, antes fragilizados e assustados perante o baque do imponderável, descobrirem em si mesmos forças insuspeitadas, elevando, assim, a qualidade de vida, Peres garante que o mais importante durante a travessia dos nevoeiros é obter a sensação de amparo e conforto espiritual, venham eles do céu, da Terra ou da alma, como provam as três histórias de fé, esperança e bom humor, apesar dos pesares, que você lê a seguir.

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História 1. Como Cristiana venceu a tristeza após a separação

“Descobri minha verdadeira natureza”

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Logo que me separei, senti como se tivesse caído no fundo de um poço. Nessas situações caóticas, não há meio-termo: ou você se afunda no buraco (quando não vê a mola poderosíssima que ali existe e vai impulsioná- la novamente para fora) e acaba, muitas vezes, adoecendo ou cresce muito. No meu caso, descobri minha verdadeira natureza e, mais ainda, aprendi a segui-la. Isso não tem preço! A principal crença que fortalece minha fé hoje em dia é a de que existe uma “inteligência amorosa” cuidando dos nossos passos (a qual podemos chamar de Deus, universo ou energia do amor) e que devemos nos entregar ao fluxo natural da vida. Se sentirmos que existe algo caminhando em uma direção, mesmo que contrária aos nossos desejos, devemos nos entregar e deixar fluir, sem resistência nenhuma. Mesmo que não tenhamos consciência das razões envolvidas, lá na frente veremos que esse caminho que estava se desvendando era benéfico não só para nós como também para todos ao redor. Nosso papel é apenas nos posicionarmos segundo nossa natureza, ou seja, fazermos escolhas pautadas pelo que nos faz sentir bem, nos mantermos conectados à nossa essência e entregar as soluções para algo maior. Todos nós temos uma luz interior. Mas, para que ela possa se manifestar, é importante nos mantermos saudáveis tanto fisicamente (boa alimentação e exercícios físicos regulares são fundamentais) quanto mentalmente e espiritualmente. Práticas meditativas ajudam muito, nos colocam no eixo, com a mente serena e o coração apaziguado. É por isso que medito todas as manhãs. Antes de iniciar meus atendimentos, também faço uma meditação de dez minutos e, quando tenho decisões importantes pela frente, peço ao universo que envie a melhor solução. Christiana Alonso Moron, dermatologista de São Paulo

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História 2. Como a notícia de que estava com câncer fez Mirela ter mais fé

“Bom humor acima de tudo

Em 30 de novembro de 2006, recebi a notícia de que estava com câncer de mama. No mesmo ano, eu havia dissolvido um casamento de 12 anos – com uma filha pequena – e perdido um bom emprego. No primeiro momento, me revoltei contra Deus. Achei injusto da parte dele permitir que eu tivesse de passar por tantos maus momentos. Depois, me apeguei a ele com todas as forças. Passei a acreditar que havia um bom motivo por trás da provação. Hoje, sei que a razão era poder dizer às pessoas: “Vejam, se eu me curei, tenham fé que vocês também conseguirão”. Após duas cirurgias bem-sucedidas e o início da quimioterapia, vi que poderia retomar a minha vida de forma quase normal. Passei a me sentir mais confiante na cura e fui em busca de um novo emprego e de atividades que me davam prazer. Minha espiritualidade se intensificou após a doença. Eu rezava tanto que confundia os santos. Fiz uma promessa a Nossa Senhora Aparecida de ir até seu santuário em Fátima. Vejam só – acabei visitando as

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duas catedrais. Ia dormir rezando, acordava rezando. Tentava, e tento até hoje, somente alimentar pensamentos positivos. Tenho Deus como um amigo íntimo, sempre presente. Também não saio de casa antes de conversar com todos os meus santinhos.

Pareço uma chefe distribuindo a eles tarefas diárias. Mas peço força e proteção sempre com muito carinho e gratidão. Aprendi a valorizar os verdadeiros amigos, as pessoas que ficaram ao meu lado. Descobri que me amo, que nunca serei menos mulher do que as outras só porque meu seio não é perfeito ou porque perdi os cabelos. Aliás, conheci meu atual marido careca, fazendo quimioterapia. Aprendi a ser mais corajosa e a não dar tanta importância a fatos efêmeros. Acima de tudo, aprendi que não devemos desperdiçar nenhuma oportunidade para voltar a ser feliz. Se o seu amigo ou o seu cachorro a chamar para um passeio, vá. Você vai encontrar o sol, as árvores e pode acabar esbarrando em algo que a ajudará a virar o jogo. Mirela Janotti, publicitária de São Paulo

 

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História 3. Como a fé de Mariana a salvou

Flutuando pela vida

O otimismo é um traço da minha personalidade. Atendo ao telefone rindo, sem perceber. Meus amigos dizem que meus olhos sorriem. Ter fé é acreditar naquilo que não se vê. Eu acredito tanto numa força maior chamada Deus quanto na capacidade de atingir objetivos com base no esforço, na entrega. Se você não acreditar, as coisas não acontecem. Todos nós temos uma ligação direta com Deus sem necessariamente passar pela religião. Podemos nos comunicar com ele nos momentos de introspecção, meditação, devoção, seja de que jeito for. todas as manhãs, Agradeço pela vida, peço inspiração para criar, alegria no coração para ter encantamento e força para seguir adiante, porque, às vezes, viver não é nada fácil. Tive sucessivas crises respiratórias durante 28 anos. Cheguei a sofrer três apneias – que me deixaram roxa e me obrigaram a ser intubada. Nessas horas, me sentia sem o menor controle sobre meu corpo e mente. Estava indefesa. Mas minha fé me dizia para não me deixar abater. depois de passar por muitos médicos, conheci um competente pneumologista que me indicou o tratamento derradeiro. não tive mais ataques de bronquite. Hoje, sou uma pessoa ultracolorida. A cor é vida e tem poder de transformação. Pintar é minha terapia diária, minha dose de alegria e liberdade. Sou muito grata por isso. Carrego como lema a seguinte frase do físico Marcelo Glaiser: “No mundo do muito pequeno, tudo flutua, nada fica parado”. Remeto essa constatação à alegria de viver, a se permitir tirar os pés do chão e flutuar, com a mente higienizada. Essa postura de vida é uma forma de ter esperança. Acredito, sobretudo, nos rês: ressignificar, reciclar, refazer, repensar, retrabalhar, reposicionar-se. Ser flexível, ou seja, poder olhar para as coisas de ângulos diferentes. Mantenho o olhar fluido e a mente pulsante. Assim, me sinto viva e chuto a bola para cima, apesar das dificuldades. Mariana Holitz, artista plástica de São Paulo

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