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Entrevista: Humberto Maturana e a importância do amor

O médico e biólogo propõe que o cultivo do amor seja um caminho para a realização humana e a coragem de se questionar, a única alternativa de quem ambiciona a paz.

Por Texto Cecilia Reis | Direção de arte Camilla Frisoni Sola | Design Luciana Giammarino | Fotos Fred Busch
Atualizado em 20 dez 2016, 19h49 - Publicado em 4 jul 2012, 19h39
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Em 2000, Maturana e sua parceira, a professora Ximena Dávila, fundaram o Instituto Matriztico, em Santiago, no Chile. Em 2010, esse centro tornou-se a Escuela Matríztica Santiago, espaço que estimula a conversa e a reflexão sobre a natureza humana e as relações entre os homens. Eles estiveram recentemente no Brasil, participando de um workshop promovido pelo Caravanserai Eventos e pelo Instituto Pallas Athena, de São Paulo. Nesta entrevista, a dupla fala sobre amor, dor e reflexão. E nos convida à prática da reflexão como caminho para um mundo melhor.

BONS FLUIDOS: O que significa colocar o amor como um fundamento biológico do ser humano?

 

Humberto Maturana: O ser humano não vive só. A história da humanidade mostra que o amor está sempre associado à sobrevivência. Sobrevive na cooperação. Se a mãe não acolhe o bebê, ele perece. É o acolhimento que permite a existência. Numa de suas parábolas, Jesus fala do camponês lançando sementes ao solo. Algumas caem nas pedras e são comidas pelas aves, outras caem num solo árido e resistem por pouco tempo. Mas há aquelas que encontram boa terra e crescem vigorosas. Assim também nós precisamos de um solo acolhedor para nos desenvolver. Nosso solo acolhedor é o amor.

BF: Como a senhora, uma cientista, pode definir o amor?

 

Ximena Dávila: Esse não é um fenômeno eventual, mas uma condição básica e cotidiana que define as relações entre os humanos. Amar é uma atitude em que se aceita o outro de forma incondicional e não se exige ou se espera nada como recompensa. Amar implica ocupar-se do bem-estar do outro e do meio ambiente. Em vez de oferecer instruções do que e como fazer, amar é respeitar o espaço do outro para que ele exista em plenitude.

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HM: O amor é a emoção fundamental que tornou possível a história da humanidade. Ele determina as condutas humanas, que, por sua vez, tecem o convívio social, entendendo aqui emoção não como um sentimento, mas como formas de relacionamento. O amor nos dá a possibilidade de compartilhar a vida e o prazer de viver experiências com outras pessoas. Essa dinâmica relacional está na origem da vida humana e determinou o surgimento da linguagem, responsável pelos laços de comunicação e que inclui ações, emoções e sentimentos.

BF: Na essência, todos nós somos criaturas amorosas?

 

HM: Todas as nossas condutas, mesmo aquelas que chamamos de racionais, dão-se sob o domínio básico de uma emoção, o amor. Não o amor místico, transcendental ou divino, e também não uma virtude especial de alguns, mas um tipo de relação em que todos se mantêm fiéis a si mesmos. Amar não é um substantivo, é um verbo, uma dinâmica relacional espontânea.

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XD: Todos nós nascemos amorosos, mas vivemos em um momento histórico em que predominam relações de dominação, sentimentos agressivos, arrogância e competição, que se contrapõem aos fundamentos amorosos. Isso é o oposto do amar, pois amar é um respeito pela individualidade. Amar nos permite ser vistos, ter presença, ser escutados, enfim, existir como pessoa. É um tipo de comportamento em que não há expectativas e preconceitos – impera a aceitação do outro da forma como ele existe. O que estamos propondo é apenas recuperar em nós o que é constitutivo do nosso ser.

BF: Para vocês, o mundo é, de fato, um espaço acolhedor?

 

HM: O mundo sempre foi maravilhosamente acolhedor. Se assim não fosse, a história do ser humano não teria acontecido. Um ser só sobrevive em um entorno que o receba. Caso contrário, torna-se negativo e agressivo e não resiste. Apesar de vivermos um momento de negação do amor, só sobrevivemos porque essa emoção persiste nos vínculos que definem a vida em sociedade. É no amor que alcançamos o bem-estar e realizamos nossa condição humana.

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BF: Normalmente entendemos o amor como uma relação idealizada, perfeita. Isso é um equívoco?

 

HM: Perfeição implica expectativa. Isso não é amor para nós. O amor verdadeiro não exige nada, não pede retribuição. Quando surge a exigência, desaparece o amor. Ele não admite críticas, pois elas significam a imposição dos desejos de alguém sobre outra pessoa e isso dissipa o prazer de estar junto.

BF: Se o amor é um fundamento do ser, como surge o desamor?

 

XD: O útero é um espaço de boa terra de onde “brotamos” convencidos de que o mundo nos receberá e cuidará de nós com ternura e respeito. Se assim for, conseguimos conservar a configuração emocional própria de seres amorosos. Entretanto, o nosso estilo de vida pode nos conduzir a um processo de autodepreciação, uma armadilha criada pelos padrões da cultura contemporânea. Para rebater esse mal-estar consigo mesmo, um drible são as conversas reflexivas – um exercício de autoconhecimento em que revelamos o que vivemos e como vivemos. Refletir não é pensar, mas agir de modo a perceber o sentido da própria existência e realizar nossa natureza amorosa.

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BF: Alguém que nasceu no desamor pode se reestruturar?

 

XD: Sempre existe espaço para transformação. Num clima de desamor, esse processo traz sofrimento. Mas a dor tem sua função: ela faz refletir e nos permite examinar nossas atitudes conosco e com a sociedade e decidir se queremos continuar naquela direção ou não. Somos continuamente mutantes. Podemos gerar mundos distintos todos os dias e isso traz esperança. Nascemos com o potencial de cultivar espaços de bem-estar, capazes de ampliar a amorosidade que vivenciamos no útero materno. E, como seres amorosos, temos a capacidade de ressurgir do sofrimento.

 

HM: Cada qual tem de assumir o próprio processo de mudança. Não se pode querer transformar o outro. Isso não é um ato de amor verdadeiro – quando tentamos mudar o próximo, estamos visando nossos próprios interesses e valores. A transformação deve ser feita por cada um de nós e para o nosso próprio bem. Se alguém não merece seu amor, não tente interferir na sua conduta. Afaste-se. Você tem liberdade de escolher com quem quer estar.

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BF: Qual o sentido do sofrimento?

 

HM: A dor nos faz perguntar. Apesar de difícil, é uma oportunidade única de transformação, assim como a curiosidade, que não nos permite submissão aos padrões externos. Quando tropeçamos dói o pé. Isso faz pensar sobre o modo de andar, a atenção ao caminhar, os desafios do trajeto. A dor da alma também ensina. Se alguém me repudia, tenho de perguntar o que estou fazendo para que isso aconteça. Investigar é oportunidade para crescer.

BF: E onde nasce a dor?

 

XD: Como seres criativos, precisamos de um ambiente que nos permita a expressão plena da nossa natureza amorosa. A dor surge de experiências decorrentes do desamor em que a pessoa aceita e, portanto, acredita que merece não ser amada. Para superar esse sentimento, ela tem de se reconectar profundamente com essa natureza. E reconhecer que as expectativas colocadas sobre ela são demandas arbitrárias próprias de uma cultura centrada no resultado e na competição. Enxergar tudo isso muitas vezes depende de um estímulo externo, uma conversa desprovida de expectativas e julgamentos.

BF: Viver é um esforço, aqui entendido como sofrimento?

 

XD: O único caminho possível é a reflexão. Mas refletir não pode ser encarado como um esforço. Se há esforço significa que estamos procurando soluções. Isso não é reflexão. Refletir é conseguir recuar da cena para enxergar – e entender – a situação por outro prisma e encontrar uma nova direção a seguir.

BF: Nesse sentido, o que significa refletir para a senhora?

 

XD: A pergunta primordial é: gosto de viver o que estou vivendo? Quando me disponho a essa pergunta, já estou revendo minhas posturas, fora do âmbito da dor e da angústia. A conquista da consciência passa por outras perguntas: será que o meu desejo é uma imposição do outro? Será que eu quero o que imagino que quero? A reflexão guarda o desejo de se transportar para uma realidade melhor. O processo pode ser desconfortável. E é justamente quando o bem-estar desaparece que surge a oportunidade de encarar as emoções que nos povoam.

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