A rotina de pescadores artesanais brasileiros

No oceano, como na vida, tudo é incerto. De que forma lidar com isso quando o sustento depende das águas? Conheça a dura rotina dos pescadores artesanais brasileiros

Por Texto: Xavier Bartaburu | Fotos: Valdemir Cunha, do livro "Brasil Litoral" (editora Origem)
Atualizado em 20 dez 2016, 15h19 - Publicado em 10 mar 2014, 20h34

Parece história de pescador, mas não é. Há testemunhas e provas. Aconteceu faz quase 30 anos, no mar de Ilhéus, sul da Bahia. Luiz Moreira – apelidado de Oião – saiu para pescar num dia de Finados e quase que ele próprio se finou. Estavam ele e os companheiros num ponto distante da costa onde a profundidade alcança os 3 mil metros, quando Oião sentiu a fisgada. Nem deu tempo de reagir: o peixe pescou o pescador e o arrastou para longe do barco, por meio de uma linha que nunca se vira arrebentar. Era um marlim-azul, tigre dos mares, 3 toneladas de pura tenacidade. Então, o impossível: a linha arrebentou. E Oião renasceu. “Foi milagre”, ele resume, mostrando as marcas da linha nos dedos da mão direita, profundas como uma cicatriz. Outros não tiveram tanta sorte. São infinitas, por toda a costa brasileira, as histórias de gente que foi pescar e não voltou, tais como as que Jorge Amado conta e Dorival Caymmi canta. Dizia-se, antigamente, que Iemanjá levava embora os pescadores, fazendo deles seus amantes. Coisa da religiosidade popular brasileira, tão afeita à salada de santos: Iemanjá, divindade importada dos cultos africanos, aqui se misturou com a devoção dos portugueses a Nossa Senhora dos Navegantes e ainda ganhou o tempero mitológico das sereias mediterrâneas – aquelas que enfeitiçam os homens e os carregam para o fundo do oceano. A Iemanjá de hoje é menos perigosa: poucos são os pescadores que acreditam no sortilégio. Mas confiam à santa, isso sim, a fartura no mar. Vide a festa que todo dia 2 de fevereiro leva milhões de pessoas à praia do Rio Vermelho, em Salvador.

Acredite-se ou não em lendas, o fato é que essa vida é cercada de riscos. Perecer no oceano é a grande sombra que acompanha a existência dos cerca de 900 mil pescadores artesanais que atuam no Brasil. Em particular os que pescam em barco a vela no alto-mar, movidos apenas pelo vento, como é o caso dos jangadeiros do Nordeste. Ou de Melé – José Ribeiro dos Santos é seu nome de batismo –, morador da Ilha de Marajó que passou 40 anos velejando na embocadura do Rio Amazonas, onde ondas gigantes engolem as embarcações e tornam viúvas as mulheres. “É barco para cima e para baixo o dia todo. Até nós, acostumados, já estamos parando. A gente cria medo, né?” E isso porque hoje nenhum barco se afasta da praia se não tiver sonda, rádio e GPS. Antes, o sujeito atravessava dias ou semanas no mar sem contato com o resto do mundo, guiado apenas pelos pássaros e pelas estrelas. “Oxente, agora a pescaria é mole!”, zomba Zé Gateiro, pescador de Itacaré, na Bahia. “Naquela época, meu camarada, o negócio era sistema bruto. A gente ia pela vista. Quando não via ave, ficava embananado.” É verdade que os acidentes no mar diminuiram consideravelmente nos últimos anos, mas vida de pescador artesanal ainda está longe da moleza. A começar pelo fato de que não há garantia de peixe. O sujeito zarpa antes do sol raiar sem saber se vai voltar com o barco cheio. Às vezes, retorna só no fim do dia, carregando meia dúzia de peixes miúdos que mal vão assegurar um dia de sustento na família. Em certos pontos, os bancos de pesca ficam tão distantes da costa que é preciso passar muitos dias fora de casa, torrando sob o sol dos trópicos, dormindo debaixo das estrelas e rezando para que não chegue temporal. Edvaldo de Jesus, o Dinho, pescador de Ilhéus, encara até 16 horas de viagem em barco a motor para chegar aonde está a maior concentração de peixes, a 100 quilômetros do litoral. “Ancoro no pesqueiro e fico esperando”, diz. “Uma hora a gente acostuma, né? É que nem no escritório.”

Dinho diz que, quando a pescaria é boa, volta para casa com 1 tonelada de peixe no convés. “Tem dias que você senta ali e o peixe vem comer na mão”, conta. Mas nem sempre é assim. E, ao que parece, tem sido assim cada vez menos. Por toda a costa brasileira, é notória a diminuição dos estoques pesqueiros – pela poluição das águas, pela pesca ilegal durante o período que as espécies precisam para se reproduzir e, sobretudo, pela competição com a pesca industrial, que chega com suas redes imensas e seus sonares capazes de identificar os cardumes a quilômetros. Embora 99% dos pescadores registrados no Brasil sejam artesanais, menos da metade da produção pesqueira (1,2 milhão de toneladas, segundo o Ministério da Pesca) provém da prática artesanal. Daí o inevitável: assim como os peixes vêm sumindo, somem também os pescadores tradicionais, que cada vez mais trocam o mar pela renda obtida com o aluguel de suas casas aos veranistas.

Tudo isso faz da vida do pescador artesanal brasileiro uma existência de incertezas. É aí que entra o profundo conhecimento dos mistérios marítimos, em geral transmitido de pai para filho. Quanto mais se sabe, maior a garantia de sobrevivência. Para os pescadores da nossa costa, o oceano não é um vazio, mas um mapa traçado a partir de linhas imaginárias onde o que existe embaixo da água – de seres marinhos a acidentes geográficos – tem nome e sobrenome. Aqui, a experiência tem valor maior que o mais moderno GPS. O resto é paciência, atenção e fé. No meio do oceano, onde o barco é a ilha que navega entre o incerto, ninguém sabe que peixe morderá a próxima isca. Pode ser um marlim-azul, como o que arrastou Oião. Ou uma arraia de 100 quilos que  irá assegurar um mês de fartura para a família. Ou nem isso. Pode ser a baleia-jubarte que um dia passou rente ao barco de Dinho, ensinando piruetas ao filhote. A vida no mar, às vezes, tem dessas belezas.

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