Rubem Alves: Amor arrebatado que a gente não esquece

Os romances que tocam a alma falam de uma felicidade efêmera, cuja lembrança nos acompanha para sempre. À vida fica reservado o conflito de perder o amor para, veja você, preservá-lo

Por Rubem Alves
Atualizado em 21 dez 2016, 00h02 - Publicado em 4 abr 2013, 16h49
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Ela lhe deu o livro e disse: “É uma história de amor muito bonita. Mas não quero o fim para nós…” Na capa do livro estava escrito: As Pontes de Madison.

Madison era o nome de uma daquelas cidadezinhas pacatas do interior americano, lugar de criadores de gado, novidades não havia, todas as noites eram a mesma coisa, os homens se reuniam nos bares para beber cerveja e falar sobre touros e vacas ou jogavam boliche com suas mulheres, que durante o dia cuidavam das casas e cozinhavam, e aos domingos a família ia à igreja e cumprimentavam o pastor na saída pelo bom sermão. Todos conheciam todos, todos sabiam de tudo, vida privada não havia e nem segredos e, como gado manso, ninguém se atrevia a pular as cercas porque todos ficariam sabendo.

A cidade era vazia de atrativos além do gado, a não ser algumas pontes cobertas sobre um rio a que os moradores não atribuíam qualquer importância. Eram cobertas como proteção contra as nevascas de inverno que poderiam cobrir as pontes, bloqueando o tráfego dos veículos. Só uns poucos turistas que paravam no lugar as julgavam dignas de serem fotografadas.

A família, pacata como as outras, era composta de marido, mulher e dois filhos. Eles tinham cabeças de criadores de gado, cheiro de criadores de gado, olhos de criadores de gado e sensibilidade de criadores de gado.

A esposa era uma mulher bonita e discreta, de sorriso e olhos tristes. Mas o marido não a via, lotados que estavam com touros e vacas.

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Suas rotinas de vida eram iguais às rotinas de todas as outras mulheres. Essa era a sorte comum de todas que, em Madison, haviam se esquecido da arte de sonhar. As portas das gaiolas podiam ficar abertas, mas suas asas tinham desaprendido a arte do vôo.

Marido e filhos tratavam a casa como uma extensão dos currais e havia na cozinha aquela porta de molas que batia no batente produzindo um ruído seco como o de uma porteira sempre que entravam. A mulher já lhes havia pedido vezes sem conta que segurassem a porta para que ela fechasse de mansinho. Mas o pai e os filhos, acostumados à música da porteira, não prestavam atenção. Com o passar do tempo, ela compreendeu que era inútil. A batida seca passou a ser o sinal de que marido e filhos haviam chegado.

Aquele era um dia diferente. Havia excitação na cidade. Os homens se preparavam para levar seus animais para uma exposição de gado numa cidade próxima. As mulheres ficariam sozinhas. Na cidadezinha amiga, elas estariam protegidas.

E assim aconteceu com ela naquele dia em que a porta não bateu…

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Era uma tarde parada e calorenta. Nem uma vivalma até onde a vista alcançava. Ela, sozinha na sua casa.

Mas rompendo a mesmice de todos os dias passou pela estrada de terra um estranho guiando um jeep. Estava perdido, enganara-se sobre as estradas que não tinham indicações, procurava alguém que pudesse ajudá-lo a encontrar aquilo que procurava. Era um fotógrafo que procurava as pontes cobertas para escrever um artigo para a Geographic Magazine.

Vendo a mulher que da varanda o observava interrogativa – quem seria? – ele parou defronte da casa. Ele, surpreendido que uma mulher tão bonita estivesse sozinha naquele fim de mundo, se aproxima. É convidado a subir até a varanda – que mal poderia haver nesse gesto de cortesia? Ele estava suado. Que mal haveria que tomassem juntos uma limonada gelada? Quanto tempo fazia que ela não conversava assim com um homem estranho, sozinha?

Foi então que aconteceu. E os dois disseram em silêncio: “Quando te vi amei-te já muito antes…” E assim a noite passou com um amor manso, delicado e apaixonado que nem ela e nem ele jamais experimentaram.

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Mas o tempo da felicidade passa rápido. A madrugada chegou. A vida real em breve entraria pela porta: filhos, marido e o barulho seco da porta. Hora da despedida, hora do “nunca mais”.

Mas a paixão não aceita separações. Ela deseja a eternidade: “Que seja eterno embora chama e infinito pra todo o sempre…”

Eles tomam então a decisão de partirem juntos. Ele a esperaria numa determinada esquina. Para ele, seria fácil: solteiro, livre, nada o prendia. Difícil para ela, presa a marido e filhos. E ela pensava na humilhação que sofreriam na tagarelice dos bares e da igreja.

Chovia forte. Ela e o marido se aproximam da esquina combinada, o marido sem suspeitar do sofrimento de paixão assentado ao seu lado. Sinal vermelho. O carro pára. Ele a esperava na esquina, a chuva lhe escorrendo pelo rosto e roupa. Seus olhares se encontram. Ele decidido, esperando. Ela, partida pela dor. A decisão ainda não está feita. Sua mão está crispada sobre a alavanca da maçaneta. Bastaria um movimento da mão, não mais que cinco centímetros. A porta se abriria, ela sairia sob a chuva e iria abraçar aquele que ela amava. A luz verde do semáforo se acende. A porta não se abre. O carro segue para o “nunca mais”…

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E esse foi o fim da estória no filme e na vida…

 

Rubem Alves nasceu no interior de Minas Gerais e é escritor, pedagogo, teólogo e psicanalista.

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