Rubem Alves: A ternura
Deve-se à paixão a contemplação da beleza. O olhar de quem ama torna belo o objeto amado e, assim, um e outro são mutuamente cativados. O universo de ambos se alegra e se amplia
Soeren Kierkegaard definiu a pureza de coração como “desejar uma só coisa”. Puro é aquilo em que não há misturas, é uma coisa só, um único desejo. Assim é a paixão: pura. Porque ela se alimenta de uma coisa só: a imagem da pessoa amada.
Não se trata de uma imagem mais bonita que as outras. É uma única imagem que apaga todas as outras. O apaixonado só pensa na pessoa amada. Em todos os momentos, sempre. Os assuntos que fazem as conversas do cotidiano não o interessam. Bem que ele gostaria de falar sobre o seu amor. Mas ele se cala, sabendo que os outros ririam dele.
Camões, no episódio de Inês de Castro, escreveu que ela caminhava “dizendo aos campos e às ervinhas o nome que no peito escrito tinhas…”. Se não havia ouvidos humanos a quem pudesse dizer o nome que tinha gravado no peito, que as árvores, a relva e as pedras fossem depositárias do seu segredo – um único nome.
A raposa pediu que o Pequeno Príncipe a cativasse.
“O que é cativar?”, perguntou então o Pequeno Príncipe.
“Cativar é assim”, explicou a raposa. “Eu me assento lá longe e você se assenta aqui. Eu olho para você e você olha para mim. No dia seguinte nos assentamos mais perto. Eu olho para você e você olha para mim. Até que nos assentamos juntos. Se você me cativar eu pensarei em você, conhecerei o ruído dos seus passos e sairei da minha toca quando você chegar…”
Aconteceu então que o Pequeno Príncipe cativou a raposa. O tempo passou e chegou um dia em que ele disse à raposa:
“Preciso ir…”
A raposa disse: “Vou chorar…”
“Não é culpa minha. Eu não queria cativar você. E agora você vai chorar… O que é que você ganhou com isso?”
“Ganhei os campos de trigo”, retrucou a raposa para aquele pequeno.
“Como assim?”, perguntou o Pequeno Príncipe sem entender.
“Eu sou uma raposa. Eu como galinhas, não como trigo. Os campos de trigo não me comovem. Mas porque você me cativou eu amarei os campos de trigo. O seu cabelo é louro. Os campos de trigo são dourados. Assim, quando o vento bater nos campos de trigo eu me lembrarei de você e sorrirei…” O rosto do Pequeno Príncipe estava gravado no trigal. Mas isso só o apaixonado vê.
O amor começa quando colocamos uma metáfora poética no rosto da mulher amada. A paixão é uma experiência estética. Está ligada à contemplação da beleza. A mulher pela qual se está apaixonado é bela. Não é que ela seja bela. É o olhar apaixonado que a torna bela. Porque não vemos o que vemos, vemos o que somos. Uma mulher é bela quando nos vemos belos ao olhar nos seus olhos. Quem, ao olhar para uma mulher, pensa em sexo não é um apaixonado. Porque não está pensando no seu rosto.
O apaixonado sorri ao contemplar sua amada dormindo, sem tocá-la: o corpo de lado, o rosto sobre o travesseiro, de olhos fechados, o suave ressonar, a camisola suspensa deixando ver a calcinha: é uma imagem de paz, de tranqüilidade. E um momento de ternura. Há um desejo de acariciá-la, mas a mão se contém: nenhum movimento seu deverá interromper a beleza da cena. Nessa cena os impulsos sexuais estão proibidos.
O sexo dos adolescentes e jovens nem precisa de um objeto que o excite. Ele se excita por si mesmo. O que se busca não é a experiência amorosa. É sobre esse sexo que Freud escreveu. Era o único que ele conhecia. Era o sexo que Tomaz, personagem de A Insustentável Leveza do Ser, fazia com suas namoradas. Tomaz não sentia ternura por suas amantes. Ele as usava. Não as amava. Mas uma delas protestava: “Não procuro o prazer, procuro a alegria…” Mas onde mora a alegria? Mora no rosto da mulher amada, nos seus olhos que dizem: “Como é bom que você existe…”
Rubem Alves nasceu no interior de Minas Gerais e é escritor, pedagogo, teólogo e psicanalista.