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Religião em sala de aula

Colocar as crenças sob uma nova perspectiva é a paixão do professor Silas Guerriero

Por Texto: Cristiana Felippe e Silva | Caricatura Gustavo Duarte
Atualizado em 20 dez 2016, 23h52 - Publicado em 1 jul 2014, 20h34
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Ele fala de religiões, deuses e mitos e transforma a sala de aula em um templo. Seguindo o exemplo dos sábios antigos que repassavam o conhecimento por meio de histórias, ele instiga a imaginação e a curiosidade dos alunos para assuntos relacionados à religiosidade. Para o professor Silas Guerriero, lecionar é sagrado. “Desde o cuidado com uma planta até a atenção ao semelhante estou expressando a minha espiritualidade. Pessoalmente, não sinto que preciso de religião para viver, mas a máxima cristã do ‘Deus é amor’ faz sentido para mim. Ao passar o que sei para os alunos, exerço uma atividade de amor. E, já que considerar algo sagrado é valorizá-lo, posso dizer que para mim uma aula pode ser sagrada”, diz. Apaixonado pelos temas místicos desde a adolescência, largou a faculdade de engenharia para cursar ciências sociais numa época em que essa disciplina era malvista (em tempos de contestação, mais importante do que estudar a vida social de grupos humanos era entender as ciências políticas). Especializou-se em antropologia das religiões por declarado encantamento ao tema. Docente da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), seus principais temas de pesquisa são os novos movimentos religiosos e a natureza da religião. É autor dos livros A Magia Existe? (Paulus, 2003) e Novos Movimentos Religiosos (Paulinas, 2006). Na entrevista realizada no Pátio da Cruz da PUC, onde funcionou um antigo convento carmelita, ele analisou a importância da religião para a sobrevivência do Homo sapiens e abordou a tendência de as pessoas deixarem de seguir as autoridades religiosas para desenvolverem a própria espiritualidade.

Seguir uma religião e buscar a espiritualidade são coisas diferentes?

Costuma-se usar essas palavras como sinônimos, mas entender esses conceitos não é tão simples. No meio acadêmico, troca-se a palavra Deus por sagrado, fala-se da essência em si mesma. Para o crente, religião é entrar em contato com a verdade (nirvana, Deus, Brahma etc.) e o indivíduo passa a fazer parte do todo. Mas isso não faz muito sentido para nós ocidentais porque a identidade é muito forte; acreditamos em ressurreição. A religiosidade (ou espiritualidade) significa o que as pessoas fazem para expressar sua fé. Segundo o cientista social William Paden, o estudo de religiões é um estudo de perspectivas. Dependendo do grupo, constrói-se de um jeito ou de outro. Por exemplo, os crentes têm visões, a pessoa acredita que está recebendo o Espírito Santo. Para a ciência, essas visões são estados alterados de consciência, que podem ocorrer entrando em transe.

Muitas pessoas dizem que não têm uma crença, mas acendem velas, cultuam Iemanjá e fazem meditação.

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Há quem esteja buscando um caminho espiritual independente. São as chamadas religiões de Nova Era. Podem misturar um pouco de todas as tradições e ainda se apropriar de conteúdos da ciência como a física quântica, mesmo sem a conhecer a fundo. O indivíduo não segue as autoridades das instituições religiosas estabelecidas, mas geralmente vai ter um facilitador, um guru, e busca seu caminho sozinho.

O conceito de religião vem mudando com o tempo?

Quando os europeus entraram em contato com os aborígenes, não encontraram religião porque só consideravam como tal o cristianismo, o islamismo e o judaismo. As crenças dos povos primitivos eram chamadas de magia. A antropologia avançou e rebatizou essa fé como sistema de crenças. Mas muita gente ainda enxerga religião como os europeus de antigamente. Acredita-se que a etnologia da palavra leva ao seu significado, mas foi apenas um nome atribuído. Religio significa a coisa que tem que ser feita de maneira correta como ritual; se contrapõe à palavra superstício que é fazer do jeito errado. Esse conceito foi criado porque durante bom tempo, desde a Idade Média, ou se seguia a religião dominante ou se era errado. A Inquisição foi uma maneira de combater todos os que pensavam de forma diferente.

Qual seria, hoje, a doutrina menos compreendida?

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Existem milhares de religiões no mundo, e poucas são grandes. Costumamos ver as pequenas como algo sem valor, mas na verdade todas são formas válidas. Não podemos partir do pressuposto que existem umas mais verdadeiras que outras. Existem, sim, as pouco conhecidas.

O que há de mais recente nessa área de estudos?

A explicação de que um sistema dogmático é o caminho ao sagrado serve ao crente e ao teólogo, mas não convence a ciência. Começa a existir um campo rico sobre a natureza da religião, ligado à biologia e à psicologia evolutiva para entender por que é tão difundida entre os povos. Podemos entender a religião e a busca por explicação por meio das características mentais, como a nossa curiosidade nata. A nossa espécie só não desapareceu devido à habilidade excepcional da imaginação, de criar soluções aos desafios. Imaginar novos mundos e seres sobrenaturais salvou o grupo, trouxe um enorme ganho de adaptação.

Ou seja, os ritos e mitos interferem na sobrevivência humana.

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O mito é uma forma de passar acúmulo de conhecimento e registrá-lo. Era difícil passar as informações ipsis litteris, então, criaram histórias com seres fabulosos para passar códigos de conduta, como achar água e caçar. São criadas essas figuras míticas, mais fáceis de serem lembradas. Foi também uma forma de sobrevivência dos anciãos, de mostrar que são fundamentais por conservar a sabedoria do grupo. O ritual faz o mito, a informação e a memória serem guardados.

Mas qual o sentido de fcar diante de um muro balançando a cabeça por longo tempo, fazer jejum ou subir de joelhos a escadaria de uma igreja?

Precisamos mostrar que somos de um determinado grupo para que, no momento de necessidade, eles possam ajudar.

E os rituais funerários?

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O rito funerário existe porque é preciso colocar o morto em algum lugar sossegado, porque ele continua existindo na nossa lembrança. A forma como a sociedade encontra de lidar com a perda é a crença de que alguma coisa permanece da pessoa mesmo depois do fim (alma, espírito, luz, energia). Os orientais têm altares nas casas onde cultuam o morto com fotos, arroz, incensos. Se não houvesse um lugar, seria o caos e não suportamos isso.

Por que mesmo as pessoas que se dizem mais céticas acabam procurando orações e promessas em momentos de dor?

Porque é difícil lidar com coisas que ferem o ritmo normal da vida. É uma forma de lidar com a dor, a falta de sentido e o inexplicável. É preciso preencher o vazio construindo mundos significativos que deem conta disso. O médico explica tim-tim por tim-tim o que está acontecendo, mas isso não aplaca a dor, não tem sentimento. A religião conforta, faz perceber que não se está sozinho, que existem coisas além da materialidade. Diante da aflição da doença, o ser humano procura qualquer coisa, por isso, muitas vezes, vai ao médico e na benzedeira ao mesmo tempo.

No fundo, todas as tradições religiosas propõem o mesmo: melhorar o homem?

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Não. Tem quem estude o outro para acabar com ele. Há religiões que incitam mais a violência. Elas não estão lá para aprimorar o ser humano. Muitas vezes foram exatamente o contrário: um tremendo retrocesso para o desenvolvimento humano.

Não é frustrante saber que por mais que se estude teologia ou antropologia, nunca se conseguirá desvendar totalmente o mistério da vida?

Não. É muito instigante pesquisar, porque sempre buscamos coisas novas. A religião é um fato social palpável. As pessoas vivem, creem e fazem coisas por meio dela. Do ponto de vista teológico, o mistério sempre vai existir. Para a ciência, trata-se apenas do que não é conhecido. Estudar as ciências da religião é um caminho fascinante porque há a possibilidade de conhecer mais sobre outras culturas. Sempre vão existir novas crenças a partir da mesma natureza básica. Uma ou outra pessoa pode viver sem isso, mas no geral todos têm uma religião ou formas de expressar sua espiritualidade.

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