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Para de fazer cena e seja você mesma

Por que temos de passar a vida provando o quanto somos infalíveis na hora de cuidar do filho, de atender aos pais, de atingir metas de trabalho...?

Por Texto: Kátia Stringueto | Design Julio Grobel
Atualizado em 20 dez 2016, 22h58 - Publicado em 26 set 2013, 20h57
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Aos 52 anos, Ana resolveu fazer aikido. “Nessa luta, treinamos tanto aplicar quanto receber golpes, numa metáfora da vida. Num episódio interessante, quis mostrar para meu mestre que era boa e fiz tudo errado. Quanto mais raiva sentia, mais ia para o tatame. Dias depois, quando me dei conta disso, relaxei e passei a lutar melhor”, admite. A postura reverberou pela vida afora. “Ia a festas e pensava: ‘Será que alguém vai me chamar para dançar?” Havia uma carência enorme. Após sete meses de treino e 12 quilos mais leve – eu me desapeguei do que não servia –, percebi que o amor-próprio, quando adquirido, traz uma plenitude e uma segurança que dispensam qualquer tipo de prova. Você abraça suas sombras e aceita quem é, inclusive com as imperfeições que fazia um esforço tremendo para esconder. A coragem de receber qualquer golpe vem em seguida.” Provar nosso valor (leia-se, infalibilidade) demanda um gasto cinematrográfico. “Em O Último Samurai [de Edward Zwick] – para quem não lembra, Tom Cruise interpreta um coronel americano feito prisioneiro dos samurais e passa a viver como eles –, quanto mais o personagem central se esforça para lutar, mais acaba no chão, comendo humilhação empoeirada”, ilustra o psiquiatra e analista junguiano Marco Antonio Spinelli, da capital paulista. “Na cena de que gosto mais, um aprendiz fala para o coronel: ‘Você pensa demais!’ Ele está preocupado com o que o adversário fará, em como vai derrotá-lo, quem está assistindo, e não se entrega ao movimento”, traduz. Em resumo: “O problema não é ter ou não de provar algo para alguém. É o peso que carregamos por esses infinitos pares de olhos que ficam nos julgando, pelo menos em nosso imaginário”, enfatiza Spinelli.

O que parecemos e o que somos

Segundo o terapeuta, vivemos numa sociedade simulacro, em que a preocupação com a forma (vide a bolsa de grife, o relógio, o sapato com sola vermelha) supera o conteúdo. Provar tem a ver com isso, com que imagem pretendemos projetar. “Uma prova de maturidade é estabelecer uma convicção sobre o que somos, tornando a opinião alheia menos importante com o tempo”, diz Spinelli. Não se trata de desconsiderar o outro, mas de não perder a noção de quem somos.

A cena da morte de um respeitoso samurai, no mesmo filme, fala disso. “Às vezes, a gente precisa se retirar de cena. É um morrer simbólico, que significa deixar atitudes e comportamentos para trás”, entende Ana Altenfelder. O reconhecimento é importante, porém não dá para terceirizar a validação de si mesmo. Spinelli lembra bra de uma paciente atriz que queria se tornar escritora. Ela fez cursos de literatura, faculdade de letras, contudo os acadêmicos sempre negavam sua capacidade de escrita como se o fato de ter sido famosa a descredenciasse. Puro preconceito. “Nosso trabalho foi no sentido de ela entender que estava pronta para lançar seu livro. E que aquele orientador é que não servia para ela”, conta.

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Para José Pedro Lopes da Silva, é necessário ter clareza do poder que você entrega ao outro. E noção de limite. De um jeito ou de outro, todos nós – fora o dalai-lama – temos dúvidas a respeito do quanto valemos. Mas nosso juiz interno é o mais cruel. Daí ser importante fazer amizade consigo mesmo e se tornar um juiz menos rigoroso. “Para saber que sou bom, acredito ser importante perceber que tenho limite. Não sou perfeito e não vou conseguir agradar a todos”, afirma o psicanalista. Na experiência da psicóloga e sociopsicodramatista Rosane Rodrigues, só é preciso cuidado para não colocar no outro uma repressão que nos autoimpingimos. Para dar um exemplo do quanto as coisas não precisam ser desconfortáveis, ela lança mão de um caso clínico emblemático: “Um casal estava em terapia e a mulher contou que a filha de 9 anos tinha reclamado que a empregada a destratara. Para não perder a empregada – e manter uma estrutura social em que ‘tudo funciona’ –, a mãe pediu para a criança deixar por isso mesmo, desconfirmando a denúncia da filha. O pai, por sua vez, ficou enfurecido e disse que ia demitir a funcionária. Ou seja, pulou-se do conformismo para a violência, sem a etapa da negociação com gentileza e diplomacia”, reflete a psicóloga. “Ao sublimar o problema, a mãe continuou angustiada e incutiu na cabeça da filha que não adianta pedir ajuda”, lamenta Rosane. E acrescenta: “Muitas pessoas vão fazer terapia justamente para aprender que a gente tem mais liberdade do que pensa e precisa provar menos do que acredita”. Algo com o que o químico recifense Samuel Cavalcanti não precisa se preocupar. Não fosse assim, teria desistido de uma atitude audaciosa três anos atrás, quando, morando em Curitiba, lançou uma cerveja muito amarga, com teor alcoólico elevado, bastante corpo e malte. “Não era leve e clarinha, como o mercado tropical exigia. Mas era a que eu gostava de beber e fazia artesanalmente para meus amigos. Fugi do padrão. Em vez de criar uma bebida para competir num mercado de grandes marcas, pensei em inventar meu mercado, criando minha população cervejeira”, conta ele, fundador da Cervejaria Bodebrown, eleita a Cervejaria do Ano 2013 na edição de março do Festival Brasileiro da Cerveja. O poeta Paulo Leminski bem traduziu: “Isso de querer ser exatamente aquilo que a gente é ainda vai nos levar além”. Fim.

 

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