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O poder da chuva

O encantamento pela chuva pode ser uma chave para transformações que ajudarão as cidades a recuperar o equilíbrio.

Por Texto: Giuliana Capello | Design: Roberto Jordá
Atualizado em 20 dez 2016, 22h38 - Publicado em 28 abr 2014, 19h04
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Sabe aquela sensação gostosa da chuva, que vem acompanhada de cheiros, sons, lembranças da infância, um bem-estar meio sem nome? A vontade de ficar na janela contemplando o mundo molhado lá fora, nada mais? Muitos de nós, moradores das metrópoles, perdemos o contato mais direto com as coisas boas que só a chuva traz. O crescimento urbano desordenado tem nos levado a encarar as águas – que, tempos atrás, eram predominantemente sinal de boas colheitas e garantia de vida para as comunidades – como protagonistas de filmes apocalípticos. Colocamos a culpa na chuva por deslizamentos, trânsito caótico, catástrofes, quando, na verdade, inundações e suas consequências são sintomas de um mal cuja raiz está na falta de planejamento das cidades, que cresceram muito rapidamente a partir da década de 1960. A maior parte das mais de 5 500 prefeituras brasileiras foi criada nos últimos 30 anos!

Soma-se a isso algumas alterações nos padrões de precipitação. O primeiro relatório divulgado, em 2013, pelo Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas traça um diagnóstico importante: estamos vulneráveis às alterações do clima, e , entre elas, há mudanças que podem tornar as chuvas mais concentradas e as enchentes mais frequentes e intensas. Segundo o estudo, o maior desafio está nas cidades, que pedem para ontem uma profunda revisão de conceitos e planos ligados à infraestrutura urbana. Em São Paulo, a maior capital do país, dados do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) mostram que houve um relativo aumento da precipitação acumulada anual, entre 2000 e 2013. “Quando comparamos com os índices climatológicos de 1961 até 1990 e de 1981 a 2010, percebemos que, na maioria dos anos, a chuva ficou acima da média registrada nos períodos anteriores e com um aumento de precipitações intensas, quando a média esperada para o mês ocorre durante uma chuva de poucas horas”, explica Andrea Ramos, meteorologista do Inmet.

As cidades carecem, portanto, de uma drenagem que permita dar fluxo às águas, uma resiliência capaz de responder melhor às vontades de um mundo em transformação. “E mais resiliência significa saber combinar densidade de construções com espaços para áreas verdes e um bom manejo das águas”, afirma Elkin Velásquez, diretor do Escritório Regional da ONU-Habitat, o Programa das Nações Unidas para Assentamentos Humanos.

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O chão que pisamos, e nossos prédios impermeabilizam, precisa respirar. Cada vez que substituímos a vegetação por edifícios e avenidas asfaltadas, reduzimos o porcentual de chuva que infiltra na terra, o que explica os alagamentos e as enchentes. Para ter uma ideia, em uma área de vegetação densa, cerca de metade do volume de chuva é absorvido pelo solo, 40% evapora e apenas 10% escoa na superfície. Em solo impermeabilizado, apenas 15% desse volume encontra espaço para infiltração, 30% evapora e 55% acaba escoando na superfície.

“Essa última condição requer medidas compensatórias, com soluções combinadas e em diferentes escalas, desde ações individuais até grandes projetos que envolvem toda a cidade”, afirma a arquiteta e urbanista Lara Freitas, que há anos pesquisa caminhos sustentáveis para as cidades. São bem-vindos o cultivo, na calçada, de flores e árvores frutíferas indicadas por especialistas. Ou, ainda, as hortas em casa ou praças, como propôe o grupo paulistano Hortelões Urbanos – plantando na cidade.

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Acolher a chuva

Para criar mais áreas de absorção, Lara sugere ainda o uso de pavimentos permeáveis, valas de infiltração, piscininhas em lotes públicos e privados para reter as águas nas áreas altas, evitando alagamentos nos pontos mais baixos, e a criação de jardins de chuva nos moldes dos instalados em Portland, nos Estados Unidos (como parte do plano de drenagem elaborado para acabar com os históricos casos de enchentes do Rio Willamette, que corta o centro urbano local). “Lá, a cidade já colhe os resultados de dez anos de implantação”, comenta a urbanista. Jardins de chuva são grandes canteiros em rasas depressões de terra. Podem ser construídos em calçadas, praças e até fazer parte do paisagismo de prédios públicos, residenciais e comerciais. A vantagem é que recebem um grande volume de água pluvial e, assim, reduzem a ocorrência de alagamentos causados por chuvas intensas.

Outra medida “resiliente” é o uso de telhados verdes. Ricardo Cardim, botânico e fundador da Sky Garden, empresa especializada em coberturas com vegetação, explica que essas coberturas vivas funcionam como esponjas de água e retêm, a cada metro quadrado, entre 40 e 100 litros de chuva (dependendo da espessura de terra), que são drenados lentamente. “A instalação é possível em construções já existentes, e ainda melhora o conforto térmico da edificação”, afirma ele.

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Coletar a água das chuvas nas calhas e armazená-la em cisternas também pode ser interessante. Em Florianópolis, um premiado projeto da Secretaria de Educação instalou reservatórios de 40 mil litros em creches e escolas da cidade que, além de combater as enchentes e ser tema de atividades de educação ambiental, ainda geram economia com o reaproveitamento da água em vasos sanitários, na irrigação de jardins e na limpeza de pátios e espaços de lazer. Ainda na capital catarinense, uma legislação obriga as edificações com mais de 70 metros quadrados a apresentar sistemas de aproveitamento de água de chuva. “Leis municipais podem ser aliadas, porque têm potencial para resultados em grande escala, como é o caso do IPTU Verde, aprovado em algumas cidades do país, que oferece descontos no imposto a moradores que tiverem calçadas permeáveis, árvores no quintal ou telhado verde, entre outras medidas sustentáveis”, lembra a arquiteta Lara Freitas. Ainda que existam dados alarmantes sobre o índice de chuvas intensas, a mudança de comportamento dos cidadãos não pode ser deixada de lado como fator possível para reverter esse quadro. Resgatar o afeto que sentem pela cidade é um passo.

Para alguns, o link pode estar na memória, como é o caso de Maria do Carmo Coelho, que viveu a infância no Piauí. “Naquela época, chuva era motivo de festa e de oração. Não podemos perder esse sentimento de gratidão por algo tão essencial a cada um de nós”, diz a costureira aposentada, que sempre comemora as chuvas que refrescam as tardes quentes, em sua casa no litoral paulista.

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Também o músico paranaense Diógenes Machado não deixa nada turvar sua paixão pelas águas que caem do céu. “Consigo separar o que é uma dádiva da natureza daquilo que é resultado de atos inconsequentes da nossa sociedade”, conta. “Não dá para reclamar da chuva que nutre os rios, as plantas no meu quintal, enfim, toda a vida na Terra. O problema é nosso jeito torto de lidar com a natureza; é isso que precisa mudar”, protesta.

É bem verdade que a vida urbana nos afasta da natureza. “Tomar chuva na cidade, a caminho do trabalho, é um tremendo desconforto”, confessa Rita Mendonça, autora do livro Meio Ambiente & Natureza (Editora Senac São Paulo), onde compartilha sua experiência na condução de grupos em ambientes de natureza selvagem. “Mas isso muda quando estamos em um ambiente natural. Já fiz muitas caminhadas com grupos em dias chuvosos. No começo, as pessoas tendem a querer cancelar o passeio, mas depois que trabalham a capacidade de aceitar que nem sempre estão no controle de tudo, elas fazem revelações incríveis e dizem perceber até que a mata fica mais feliz”, revela Rita.

Muitas etnias indígenas têm forte ligação com a chuva. Para os pataxós, por exemplo, ela está no mito de criação da tribo, que diz que os primeiros ancestrais nasceram de gotas de chuva. “Os guaranis, os yanomamis, os xavantes e muitos outros cantam para fazer chover e falam de agradecimento, fertilidade, prosperidade”, conta o conferencista, ambientalista e escritor Kaká Werá Jecupé, que é de origem tapuia. Segundo sua crença, se achamos que a chuva é desgraça, é assim que ela vai se voltar para nós. “O convite que faço é para que possamos pensar um pouco sobre nossas origens. E não estou falando apenas do índio. Certamente, seu avô e bisavô, que dependiam de boas colheitas, não amaldiçoavam as águas que caem do céu”, completa Kaká. Se impermeabilizamos o solo, destruímos as nascentes e assoreamos os rios, as águas transbordam; do contrário, seja em março ou em qualquer estação do ano, é promessa de vida no seu coração. Quem discorda do maestro Tom Jobim?

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Em paz com ela

Reformar uma casa para ser mais amigável com a chuva signifca substituir alguns materiais por outros mais adequados. Já quando a construção é projetada com esses princípios, o preço da obra pode não fcar mais alto. Em ambos os casos, dá para dizer que os benefícios permitem o retorno do investimento em um curto espaço de tempo. É o caso do telhado verde (a partir de R$ 120 o metro quadrado instalado), que, ao melhorar o conforto térmico da casa, pode render economia com o ar-condicionado. Existem cisternas de diversos tamanhos e preços, que podem armazenar água da chuva para ser usada na lavagem de roupas, limpeza da casa e descargas sanitárias. As indústrias de pisos já oferecem modelos com alto poder de drenagem, cujos preços (a partir de R$ 40 o metro quadrado) não fogem da média.

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