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Mario Sergio Cortella revela sua esperança na humanidade

O nome de Mario Sergio Cortella brilha na educação, organização empresarial, filosofia, espiritualidade, ética... Mas o que mais o marca é sua esperança na humanidade.

Por Liane Alves
Atualizado em 20 dez 2016, 21h46 - Publicado em 7 jun 2013, 19h22

Quando ele fala de uma possível reversão da situação crítica do planeta, refere-se primeiro à mudança de atitude que podemos ter como indivíduos com relação à vida. Quando fala de família, muitas vezes se refere à importância de um momento íntimo, onde todos possam compartilhar o afeto cozinhando ou escutando música em conjunto. Quando fala da organização pessoal de tempo, nos diz da importânciade planejar o dia para termos uma jornada em que tudo pode ser feito velozmente e com bons resultados, mas sem tensão. Longe de dogmas e convenções, o professor e conferencista Mario Sergio Cortella conversou com BONS FLUIDOS em seu escritório, que foi seu antigo apartamento e ainda hoje está montado com sala de visitas, de jantar e cozinha. Nessa atmosfera familiar e um pouco art déco,sua grande paixão, esse filósofo e doutor em educação respeitado em vários países dá importantes indicações de como viver melhor, com base no amor, na reverência e no cuidado.

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Você fala muito em aprender todos os dias e um dos seus livros mais famosos chama-se O Que Aprendi com a Vida. O que aprendeu hoje,por exemplo? 

Aprendi que é mesmo muito importante saber planejar e organizar antecipadamente a jornada diária. Minha vida começou hoje às 6 horas da manhã, e em nenhum momento entrei em estado de tensão, pois tinha uma ideia precisa de como o dia iria se desenvolver. Isto é, estava em estado de atenção, mas não de tensão. Umas das melhoresformas de a pessoa não correr muito nem se tensionar com isso é se organizar.

É o gestor organizacional que está falando agora, portanto… 

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Sim. Eu tenho um dia pleno, mas não corrido. Não podemos confundir pressa com velocidade. Fazer velozmente é diferente de fazerapressadamente. Velocidade na organização de algo é perícia. Pressa na realização de algo é apenas sinal de desorganização. Mais uma vez hoje aprendi a importância de ter velocidade organizada em vez de ter pressa desqualificada.

A solidariedade e a humanidade nos relacionamentos são temas constantes de suas obras. Como podemos expressar essas qualidadesde maneira mais frequente? Como despertar o que é humano dentro de nós? 

Prestar mais atenção naquilo que Frei Betto chama de ecologia interior, que é a arte de cuidar. Cuidar é impedir o descuido e garantir a fertilidade: da vida, da amorosidade, das ideias… Todas as vezes que descuidamos, perdemos essa fertilidade, esse futuro mais pleno e vital. Hoje, há uma tendência grande ao descuido, com relaçãoa nós mesmos, ao meio ambiente, aos nossos afetos. Isso afeta nossa convivência. E esse descuido vem se apresentando no que há de pior, como uma percepção fatalista. Dizemos: “O que vamos fazer? A vida é assim…” Essa aceitação fatalista beira, de um lado, a complacência e, de outro, a cumplicidade em relação à degeneração da vida. Mas se há algo que nos caracteriza como espécie é exatamente recusar a aceitar uma situação que parece sem alternativas.

Isto é, temos de ter esperança que a situação mude e trabalhar por essa mudança, não é?

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Sim. Essa submissão a fatos aparentemente consumados revela a falência de nossa capacidade de cuidar. E esse desejo de cuidar é uma decisão também individual. É preciso, então, que seja tomada a atitude de não se conformar com a realidade que se apresenta diante de nós, de termos esperança de que ela mude e fazer a escolha que aposta na criação de uma nova realidade. O ser humano passa a ser, portanto, aquele que cuida e aquele que cria uma nova realidade,isto é, ajudamos a recriar a situação de outra forma, de acordo com o que pensamos que seja melhor.

Por que somos assim? De onde vem esse impulso?

Somos seres que apostamos no futuro e na possibilidade de mudança da realidade. Construímos nossas histórias levando em conta um tempo que flui, não somos seres que vivemos um presente contínuo. Levamosem conta o passado e o futuro, e o recriar da realidade. O cuidar incentiva e estimula essas mudanças, reinventa e recria o presente e o futuro. Paulo Freire chamava o ser humano daquele que é capaz do inédito viável, isto é, daquilo que não acontece ainda mas que pode acontecer. Nós queremos uma vida que nos engrandeça, que seja consciente e deliberada. Desejamos deixar algo de bom neste mundo, algo que ultrapasse nossa morte, que seja perene.

E o cuidar garante que algo permaneça no tempo, porque foi cuidado com atenção… 

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Sim. Na essência, somos seres que gostamos de cuidar… e de ser cuidados. E se pode realizar esse cuidado pelo viés da espiritualidade e da religião, da ciência, do trabalho, da família, da arte, da filosofia… Quem cuida tem a amorosidade presente dentro de si. É impossível separar o par amor/cuidado. Com muita inteligência, Leonardo Boff chama esse amor ligado ao cuidado de reverência: reverência à vida, ao outro, àquilo que é essencial na nossa existência. A materialização excessiva da nossa maneira de viver – o consumo exagerado – provocou a perda dessa reverência. Por exemplo, ao perder a reverência ao alimento, ele passou a ser malfeito, produzido em larga escala e sem qualidade, consumido com pressa.

Nosso relacionamento com os filhos também está ligado ao cuidar. O que mais facilitaria essa relação que às vezes é tão conflituosa? 

Os pais têm de ter uma convicção inicial: a de que os filhos não nascem prontos [risos]. Se eles são mal criados é porque alguém os criou dessa forma. Se eles foram bem criados, é porque também houve quem os criasse assim. Como não há nada impossível de reverter, os responsáveis precisam ser capazes de aprender a cultivar na família valores como solidariedade, alegria, sinceridade, honestidade. Para que isso seja feito, situações precisam ser inventadas, e é necessário tempo para que isso possa acontecer. Se alguém diz que não tem tempo para isso, pode ser porque julga que aquilo não é prioritário. Precisa, portanto, reavaliar suas prioridades. Vou dar um exemplo que está em um dos meus livros: você já viu um enfartadonão ter tempo de cuidar da saúde depois que fez a cirurgia? Antes ele poderia fazer de tudo para prejudicar sua saúde, mas, depois do enfarto, vai arrumar tempo para andar, para fazer exercícios. O tempo continua o mesmo, o que mudou foi o que julgava ser prioritário.

A partir do momento em que entendemos que estar com os filhos é prioritário, como estabelecer uma convivência de melhor qualidade? 

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Por exemplo, na partilha da música, peça a eles que apresentem as músicas de que gostam, em vez de dizer que o som de Lady Gaga não é música. Esse espaço de convívio pode ser criado em um dia da semana. Significa se abrir para o gosto do filho. É também o momento de mostrar a eles outros tipos de canção, como as de Chico Buarque. Os pais têm de aprender de onde o filho tira a emoção para que ele os ensine o que ele curte na música que ouve. E precisam ouvir sem preconceitos. Se ele se emociona com a música da Lady Gaga, é porque ele pode aprender a se emocionar com outras coisas. Minha mulher, Janete, e eu escolhemos os sábados no fim da tarde para fazer essa partilha com nossos três filhos pequenos [hoje são adultos], com direito a duas músicas para cada um. Isso acontece até hoje, mais informalmente.

E o que o mais podemos fazer para criar esse espaço de convivência?

Outra boa solução é o ato de cozinhar juntos. Também fazemos isso até hoje. Há coisas desagradáveis e agradáveis no ato de cozinhar, e as partilhamos todas. É desagradável ter de lavar a louça, por exemplo, mas é agradável compartilhar o alimento, apurar seu sabor. É importante partilhar o desagradável e o agradável, porque em conjuntoo desagradável se torna agradável. Outra coisa é perguntar para a criança: “O que você pode me ensinar hoje?” em vez de: “O que você fez hoje na escola?”, que é sempre uma espécie de auditoria. Todas aspessoas gostam de ensinar. Na verdade, existem dois prazeres na vida: o primeiro é falar de si mesmo, o segundo é ensinar alguma coisa para alguém [risos]. Cabe ao mundo adulto lançar pontes, abrindo espaçosde diálogos. Não chamando para conversar, mas pedindo que o filho ensine algo, como um programa de computador. É uma relação de simpatia, que cria conexão. Esse relacionamento entre pais e filhos é o tema do meu mais novo livro, Não Se Desespere.

E a questão dos limites? 

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É preciso cultivar a disciplina em casa, sim, para que os filhos possam conhecero sentido das fronteiras, das barreiras. E isso podeser feito de uma maneira leve, suave. Por que a casa da avó é tão gostosa? Porque ali se pode fazer tudo, menos o que ela proíbe. É uma maneira saudável e delicada de aprender o que é uma fronteira, por exemplo. Quando a avó diz à neta: “Pode brincar com meus vestidos, meus batons, faça o que você quiser aqui, só não mexa nessa caixinha”, ela está mostrando que a neta pode usufruir da liberdade, mas que essa liberdade tem limites. Essa proibição pode até ter um ar de mistério, mas cria fronteiras de uma forma espontânea, suave. E isso é muito importante para a formação de uma personalidade saudável. A avó geralmente oferece essa visão dos limites de uma forma leve. A educação dos limites tem de passar pela advertência,não propriamente pela ameaça. É possível falar à criança: “Você é livre, aproveite, mas se for andar em cima do muro, tome cuidado, você pode cair”. É uma expressão do cuidar. Mas na cultura latino-americana se prefere dizer: “Não ande pelo muro porque você vai cair!” Uma proibição e uma ameaça em vez de uma advertência. Na advertência você escolhe se vai atendê-la ou não. Na ameaça, há umestímulo implícito para o desafio, ainda mais quando você tem 10 anos de idade.

E como cultivar a espiritualidade de forma espontânea?

Quando você tem reverência à vida, de forma geral, como admirar a beleza de alguém ou de uma flor, deixar-se tocar por algo que o emociona, você já tem uma espiritualidade espontânea presente. Mas é preciso saber que nem toda espiritualidade é religião, mas toda religião é uma forma de espiritualidade. A espiritualidade é a fonte das religiões. A religião é uma decisão, a espiritualidade é espontânea. É impossível não assistir ao pôr do sol numa praia do Rio de Janeiro e não aplaudir. É um sorver da vida com aquilo que gera vida. Isso é espiritualidade espontânea. Ela pode ser estimulada a qualquer momento, em qualquer lugar. E está ligada também ao amor e à reverência pela existência. Qualquer pessoa pode experimentá-los, mas é preciso olhar para a vida com mais atenção, menos pressa, para que possamos perceber e ser tocados cada vez mais por esses instantes de encantamento.

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