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Entenda porque é difícil dizer adeus

Cedo ou tarde, a morte, simbólica ou concreta, vem testar nossa capacidade de transformar finais em recomeços, alargando as margens do viver.

Por Texto: Raphaela de Campos Mello
Atualizado em 14 dez 2016, 11h56 - Publicado em 18 dez 2013, 21h17
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O imenso baú da mitologia guarda a história de Orfeu, exímio cantor e tocador de lira, dilacerado pela morte de sua amada, Eurídice. Inconformado, ele desce ao mundo dos mortos a fim de resgatá-la da posse de Hades, deus dos estratos inferiores. Seu canto era tão belo e comovente que obteve permissão para trazer Eurídice de volta à vida, desde que respeitasse uma cláusula: o marido não poderia olhar para a esposa, que caminharia às suas costas, até alcançarem à superfície. À beira da luz, entretanto, Orfeu torce o pescoço e, em segundos, perde sua companheira para as trevas. Permaneceu inconsolável até o fim de seus dias.

Dramática, como é de se esperar das narrativas gregas – espelhos das sagas humanas –, essa lenda retrata a dificuldade de dizer adeus. Estão ali constelados matizes universais ligados à problemática da finitude: o amor, a dor, o apego (à pessoa, às histórias compartilhadas e a quem fomos ao lado dela), a negação do fim. Adiante, a resignação em face do imponderável e a barreira representada pela necessidade de seguir suportando cicatrizes, medos e incertezas. Mesmo processo de desenlace que se aplica, guardadas as devidas proporções, ao término de um relacionamento ou de uma época que deixa saudade, como também à mudança de rumo profissional ou de endereço. Sucessivos finais vividos, de peito aberto ou fechado, no decorrer da existência. Ninguém escapa dessa sina, embora, ao contrário de Orfeu, não precise arrastar vida afora os espinhos do pesar.

O consultor educacional José Ricardo Crocco, se não chegou a visitar o inferno de Hades, certamente alcançou suas redondezas. Por dois anos, perambulou por estradas tomadas por uma névoa tão espessa que o impedia de vislumbrar o passo seguinte. “Estava sem rumo, mas a intuição me dizia para prosseguir assim mesmo”, conta. Em 2011, após atuar por dez anos na área de design gráfico, Crocco encarou o temido bicho de sete cabeças. A crise existencial, mais parecida com um tsunami, atingiu a carreira, a saúde, a família e o casamento. Não foi fácil se despir de certezas, cenários e fazeres conhecidos. No entanto, enxergava dentro de si uma fagulha tenaz o bastante para animar sua crença em dias melhores. “Percebi que só o dinheiro não justificava tanto desgaste físico e emocional. Senti necessidade de buscar mais sentido na forma como empregava meu tempo e interagia com o mundo”, diz. Depois de muito tatear, se questionar, meditar e, ainda por cima, suportar a pressão de amigos e familiares – certos de que havia pirado – ele, enfim, encontrou o que procurava. “Percebi que trabalhar com educação me fazia pleno. Então, com base na minha vivência prévia com meditação e outras correntes terapêuticas, criei um projeto de autoconhecimento voltado para alunos do ensino médio”, conta, radiante. A iniciativa, segundo ele, mais ampla e profunda do que a orientação vocacional, se chama Guia Projeto de Vida (GPV), atualmente em curso no Colégio das Américas, em São Paulo. Quase sempre, como no caso de Crocco, o que vem depois da tempestade é, de fato, a bonança. Mas fechar portas e seguir sem olhar para trás nunca é um gesto banal ou indolor. Segundo Viviane Mosé, filósofa e psicanalista capixaba, é tão penoso assistir ao escoar de coisas, pessoas e situações porque, em nosso íntimo, nunca lamentamos uma perda isolada.

“Todo ser humano se guia por uma marca que é a certeza da morte. Logo, sofremos não só pela falta vivida naquele momento específico mas pela perda em si que caracteriza a vida”, afirma. Segundo ela, o fim imposto pelo presente remete ao caráter provisório de tudo e de todos, inclusive de nós mesmos, seres de passagem. Na visão da psicanalista Lidia Aratangy, de São Paulo, a dureza desse processo está em aceitar que uma parte nossa morre junto com o que se vai, gerando nostalgia. Mesmo mudanças para melhor nos provocam esse sentimento, ela sublinha. “Quem sai do imóvel alugado e ruma para a casa própria, por exemplo, não está livre de sentir nostalgia. Afinal, o que foi vivido numa residência parece que impregna as paredes e os espaços. São pedaços nossos que vão ficando pelo caminho”, diz, com naturalidade. Ela só se preocuparia se, no caso de um paciente hipotético, o apreço excessivo pelo passado se convertesse em paralisia. “Esse quadro certamente sinaliza muito mais um medo do novo e do desconhecido do que um apego ao que foi vivido”, pondera Lidia.

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A atriz e professora de ioga carioca Giovanna Gold bem poderia ter congelado diante da proposta de trabalho que pressupunha deixar seu apartamento na cidade maravilhosa, herança paterna a qual se refere como sendo “a representação da sua legitimidade”, para se instalar num flat em São Paulo. Entretanto, aqui está ela, desde o começo do ano, festejando o crescimento profissional e, ao mesmo tempo, depurando a falta de inúmeros detalhes, para ela, nada pequenos. “Tenho saudade das minhas coisas, das borboletas, dos tucanos, da vizinhança, dos amigos, de tomar banho de mar. Aquele lugar é tão meu que não consegui alugá-lo”, confessa. Mesmo assim, pretende refazer a carreira em solo paulistano. “Aqui estão boas oportunidades”, justifica.

Ora, se a existência se alimenta de finais e recomeços e a natureza está aí para ilustrar tal dinâmica com perfeição, há como se preparar para os desfechos que nos aguardam? Eis a pergunta de ouro. “A cada chamado da vida, o coração deve estar pronto para a despedida e para um novo começo”, vaticinou o escritor e poeta alemão Hermann Hesse (1877-1962). Sua colega de ofício, a americana Elisabeth Bishop (1911-1979) também endossava tal campanha. Como expressou nos versos de A Arte de Perder, não há mistério algum nessa contabilidade. Ainda mais se nos acostumássemos a perder “um pouquinho a cada dia”: chaves, a hora, a conexão do voo, uma casa, um amor. A aceitação de cada minúscula perda cotidiana, pregava a artista, nos prepararia para a despedida maior. “Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo que eu amo) não muda nada. Pois é evidente que a arte de perder não chega a ser mistério por muito que pareça muito sério”, escreveu em referência à morte de sua companheira Lota de Macedo Soares (1910-1967), arquiteta autodidata que planejou o Parque do Flamengo, no Rio de Janeiro.

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Lenta disgestão

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Ocorre que, fora do papel, nunca estamos 100% prontos para encerrar uma etapa e inaugurar outra, diz Lidia. “O processo não é necessariamente racional, nem inteiramente consciente. Isto é, não se ‘chega a uma conclusão’, como no final de um raciocínio lógico”, esclarece a especialista. No entanto, a retomada é perfeitamente possível, apesar de abarcar tantos pesares. “Quando esse processo é vivido com todas as emoções que a ruptura provoca (sentimentos de perda, ansiedade quanto ao novo, nostalgia de boas lembranças etc.), o ciclo se encerra automaticamente e a gente pode tocar a vida”, assegura. E, quanto mais funda for a entrega à travessia, ou seja, quanto maior a abertura para chorar, purgar e depurar sentimentos e lembranças, na hora devida, maiores são as chances de se chegar à outra margem verdadeiramente disponível para o por vir. “Só conseguimos seguir adiante se esses episódios e situações forem vividos com toda a intensidade, de modo que essas emoções se ‘gastem’. Então, podemos rememorá-los sem sofrer tudo de novo”, explica a psicanalista paulista. Viviane não só endossa essa percepção como ilumina a faceta fértil do sofrimento. “Se você impede, por meio de medicação psiquiátrica, ou disfarça, por meio da superproteção, as dores que uma pessoa sofre na vida, está produzindo um ser incapaz, impotente, porque é da vontade de superar a perda que vem a potência de cada um”, afirma. Mas, caso uma pessoa se sinta vencida por essa avalanche, certamente, assustadora, o melhor a fazer é buscar o apoio de um bom analista ou terapeuta. “Na terapia, devolvemos as emoções do passado ao seu lugar verdadeiro, em vez de ficar tropeçando nos restos de antigas emoções rejeitadas”, pontua Lidia. Por outro lado, pode ser que a resiliência, traço comum aos seres humanos, se encarregue de refazer e ressignificar histórias. “Há na maioria de nós a resiliência natural que se alimenta da seguinte resolução: vou me tornar uma pessoa melhor a partir dessa perda”, garante Viviane.

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A gaúcha Lanna Collares, 23 anos, artista visual e escritora, fez da expressão criativa seu caminho de superação. Abalada pelo término de um relacionamento, ou, como prefere nomear, “só amor, obra sem título”, ouviu da mãe que aquela ferida levaria pelo menos seis meses para cicatrizar. Pensou: como aproveitar da melhor forma esse tempo e, sobretudo, essa experiência? Ora, fazendo arte. Assim nasceu o tumblr 180cartazesprasairdafossa, canal onde publicou belos cartazes acompanhados de vídeo ou de música escolhidos por ser gatilhos de sentimentos bons. “Precisava engrandecer essa dor, fazer com que ela deixasse de ser introspectiva e passasse a ser do mundo”, lembra. Apesar de ter cumprido seu “cronograma”, Lanna diz não acreditar em regeneração completa. “Ninguém se refaz por inteiro, sempre fica uma dor, uma ferida, uma cicatriz em que é melhor não mexer, uma música que é melhor não ouvir, um bar onde é melhor não entrar. Se refazer envolve muito mais que esquecer alguém ou arrancar alguém da nossa vida.

Se refazer envolve muito mais que 180 dias”, filosofa. Não, isso não é discurso de quem estancou a sangria e, por medo de sofrer outra vez, parou de amar. “Encontrei um novo amor, mas ele não é uma ‘superação’ de outro. Amores serão sempre amáveis, completamente diferentes”, acredita ela, que segue colhendo os frutos das suas investidas na rede. Os cartazes se desdobraram em camisetas, grandes amizades e ideias para futuros projetos. Nada mal para algo que começou boiando em lágrimas.

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Igualmente disposto a transformar o padecimento numa experiência plena de significado e transcendência, o escritor, editor e jornalista americano Will Schwalbe bolou um “método” formidável para acompanhar a travessia de sua mãe, vítima de câncer. Na obra O Clube do Livro do Fim da Vida (Objetiva), ele conta como ambos aproveitaram as sessões semanais de quimioterapia, ao longo dos dois derradeiros anos, para não só conviver como trocar impressões sobre livros e, especialmente, sobre a vida que escorria às margens da ficção. A proposta soou bem, já que Mary Anne fora voluntária em países em guerra e, contra todas as probabilidades, se engajou na campanha de montar bibliotecas itinerantes nesses locais. Era amante da literatura. E, graças tanto ao interesse quanto à fibra espiritual mútuos, ambos souberam tecer momentos preciosos na cafeteria do hospital, na sala de quimioterapia e nos corredores, sempre frios e deprimentes. Contudo, em vez de a tristeza solitariamente tomar conta desses espaços, outra possibilidade foi preenchendo o que poderia ser somente vazio e angústia. “Os romances nos proporcionaram um meio de discutir algumas das coisas que ela estava enfrentando e algumas das que eu estava enfrentando”, escreve Schwalbe. Fé, família, esperança, confiança, intimidade, coragem, gratidão. Muitos foram os temas e os sentimentos aflorados por esse clube da leitura composto de apenas dois ilustres membros. Para essa mãe e para esse filho, o único jeito possível de colocarem em perspectiva a relação e de se reconfortarem diante da despedida mor, ainda por cima, inspirando outras pessoas a celebrarem a vida, muito mais do que digerirem a morte.

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