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Como é atravessar São Paulo de norte a sul de bicicleta?

Nosso repórter acompanhou um ciclista que pedala 20 km todos os dias da periferia até o centro. Atravessar a capital sobre duas rodas valeu cada momento de risco.

Por Por Nilbberth Silva
Atualizado em 20 dez 2016, 18h27 - Publicado em 25 set 2013, 19h15
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São oito da manhã, hora de trânsito pesado em São Paulo. Estou no viaduto da Lapa, pedalando entre duas fileiras de automóveis. Passa carro, passa ônibus, passa lotação. Os motores funcionam sem parar ao redor e, nesse rio de veículos se movendo, tudo que eu tenho para me proteger é a habilidade de controlar um guidão. Felizmente, tenho um guia, o técnico de informática Roberson Miguel — meu bike anjo. 

Todos os dias, Roberson, um pai de família que anda com a foto de sua filha na bolsa da bicicleta, passa duas vezes pelo viaduto. Ele pedala uns 20 km de sua casa no Jardim Peri, extremo norte da capital, até os clientes que atende em bairros como Brooklin e Alto da Lapa, na zona sudoeste. E nessa sexta-feira ensolarada, vai me ensinar o caminho da periferia ao centro.

Atravessar a maior cidade do hemisfério Sul sobre duas rodas soa surreal. A capital tem 17 mil km de ruas e avenidas, mas apenas 114 km de caminhos para bicicleta funcionando na hora do rush. E só 63,5 km são trechos que os ciclistas não precisam disputar com carros nem pedestres, as ciclofaixas permanentes e ciclovias. Mesmo assim, 500 mil ciclistas desloca-se assim ao menos uma vez por semana, segundo estimativa do Instituto Ciclocidade. Às vezes, resulta em tragédia: em 2012, 52 ciclistas morreram no trânsito paulistano – quase um por semana.

É bom lembrar, os números de tráfego em São Paulo sempre assombram. Na capital paulista, um terço dos trabalhadores demora mais de uma hora para chegar ao emprego. Em 2012, 1231 pessoas que morreram a caminho de algum lugar – 540 pedestres, segundo a Companhia de Engenharia de Tráfego (CET). E Roberson perderia duas horas e quinze minutos no transporte público para ir até a Av. Luis Carlos Berrini, nosso destino.

Como começou o nosso passeio de bike?

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Eu encontrei com Roberson no Jardim Peri. Ele mora na última casa da rua. E me espera vestindo uma calça jeans e uma camiseta escrito “um carro a menos”. Antes de partirmos para o nosso trajeto, ajusto meu assento até deixar minhas pernas esticadas durante a pedalada –  assim, gasto menos energia.  

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Começamos driblando grupos de estudantes recém-acordados até chegarmos à Av. Inajar de Souza. Cerca de 1400 ciclistas circulam lá entre 5 da manhã e 8 da noite, segundo cálculos do Instituto Ciclo Cidade. “O pessoal da periferia pedala 15, 20 km para chegar ao trabalho”, conta Roberson. “Às vezes, demoram uma hora – e não daria para fazer esse tempo de ônibus”.

A artéria tem seis faixas para carros, mas nenhum espaço para bicicletas. E pior: a CET permite dirigir a 60 km/h. Por isso, alguns veículos passam a poucos centímetros de mim e dos outros ciclistas. O truque para não ser atropelado é pedalar a um metro do meio-fio. Assim, diminui a chance de algum motorista nos encurralar entre o carro e a canaleta de água, à esquerda da pista. Quando os carros param nesse lado da rua, desviamos e passamos entre as faixas, como os motoqueiros do centro. Aqui, eles não têm entregas para fazer e ficam à direita.

Pedalamos quatro quilômetros até chegar ao passeio do bairro. A faixa de 3 km foi aberta no canteiro central da avenida para as pessoas caminharem. Mas, como a maior área verde da Vila Nova Cachoeirinha é um cemitério, os moradores transformaram a faixa arborizada em um parque.

Desviamos de gente caminhando, passeando com o cachorro e empurrando carrinho de neném. Roberson me aponta um velhinho de touca, que toda manhã levanta os braços e cumprimenta cada pessoa que vê. Passamos por uma senhora que se exercita sempre no mesmo horário, apesar da perna manca. Alguém até tentou construir bancos de madeira na lateral, à revelia da prefeitura (deu errado).  Eu gosto de tudo, inclusive do velhinho sorridente – é o efeito da endorfina, um hormônio liberado quando se faz exercício físico.

Quando começou a pedalar, em 2011, Roberson só queria chegar até ali. Ele pesava 108 quilos, mal distribuídos em 1,82 metros e precisava emagrecer. Mas os joelhos não aguentaram subir e descer as calçadas irregulares do bairro. Por isso, testou as duas rodas.

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Sustos na ponte

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O caminho acaba abruptamente. Entramos, então, em um corredor onde os ônibus bi-articulados passam na contramão. O caminho é bem mais largo que um veículo, mas não deixa os ônibus ultrapassarem uns aos outros.  A falha de planejamento beneficia os ciclistas – vale à pena ir por ali porque, em geral, quanto maior o carro, mais experiente é o condutor.

Bato papo com Cris Magalhães, uma das poucas mulheres ciclistas no caminho. Ela avança até o trecho mais perigoso da viagem, a ponte da Freguesia do Ó. Duas avenidas cheias de carros tentando atravessar o rio Tietê convergem na estrutura. É claro que não há nenhum espaço reservado para ciclistas.

Antes de chegar à Freguesia, Roberson para mais uma vez para mexer no celular. Durante todo o caminho, ele mandou mensagens de texto e alimentou um aplicativo que indica para a esposa em que ponto da cidade está. Também tuitou 16 vezes. Não é só vontade de trocar ideias. Tanta atividade mostra para a família que ele está bem, e vivo.

“Eu não pensei duas vezes antes de vender o carro. Mas pensei para me colocar no meio do trânsito”, conta. “Minha esposa não fala, mas fica preocupada”. Quando um acidente com ciclista aparece na TV, a filha lança para ele um olhar aflito. A foto da menina ajuda Roberson a se controlar e não disputar espaço com motoristas mais agressivos. “Eu coloquei na cabeça que não sou o problema do motorista”, conta. “A vida dele que é o problema dele”. Atravessei a ponte pela lateral, pedindo a Deus para não ser atropelado.

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Bike anjo

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Um quarteirão depois, encontramos com outro ciclista, Rogério Camargo. Esse ano, o analista financeiro se mudou da zona Leste da cidade para o centro expandido. A empresa onde trabalha ocupou um prédio com bicicletário, na Av. Luis Carlos Berrini, a 12 km da casa nova. Agora, Rogério quer pedalar até o trabalho e pediu a ajuda de Roberson. O técnico serve de Bike Anjo, um guia voluntário que ensina as rotas mais seguras e dá conselhos para pedalar com conforto.

Rogério vai na frente, ditando o ritmo. Atravessamos o viaduto onde passei os 45 segundos de perigo que contei no início dessa matéria e chegamos às ladeiras do Alto da Lapa. Ali estão ciclorrotas, ruas tranquilas e arborizadas os carros devem diminuir a velocidade e dar prioridade às bicicletas. Escuto umas buzinas irritadas atrás de mim, mas, ignoro.

Ciclistas dizem que ao pedalar você olha a cidade de um jeito mais próximo. É verdade. Percebo os pássaros ciscando, o traçado redondo das ruas, as fachadas retas das casas modernistas. Há dois anos, Roberson descobriu as pessoas.

Descobriu o velho precisando de ajuda para atravessar a ponte em uma cadeira de rodas. Os moradores debaixo da ponte. Os estudantes que chegam ao cursinho popular.  O senhor de quipá na Faria Lima, que não conseguia arrumar a corrente da bicicleta da filha, nem sabia dizer obrigado em português. O assaltante que roubava uma moça e levou um susto quando um ciclista apareceu. E muitos motoristas gratos. “Eu nunca empurrei tanto carro quebrado na minha vida. São dois ou três por semana”, conta.

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Da ciclorrota, passamos até outra calçada para caminhar, dessa vez na Av. Prof. Fonseca Rodrigues, no Alto de Pinheiros. É gritante a diferença entre as vias da periferia e desse bairro nobre, vizinho ao parque Vila Lobos e a 400 m da casa do ex-governador José Serra. Aqui topamos com estátuas de artistas modernos, grama uniformes e pavimento de concreto sem buracos. Mas Roberson costuma ouvir reclamações: os moradores não querem dividir a sua pista de jogging.

Motoristas entediados na Faria Lima e Berrini

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O caminho leva à única ciclovia do trajeto, na Av. Faria Lima. Os prédios de fachadas espelhadas servem a shoppings de luxo, sedes de bancos de investimento e escritórios de multinacionais importantes, como o Google. Nos carros ao redor, estão alguns dos motoristas mais entediados de São Paulo: a velocidade média dos carros na avenida não ultrapassa 9,8 km/h, segundo a CET.

 Ao meu lado, um homem pedala carregando o terno na mochila. Luis Cruz, que mora no bairro vizinho, percorre os 4 km até o trabalho em 12 minutos.  “Hoje passo mais tempo com minha filha, tá ligado? Eu demorava 45 minutos para ir e 45 para voltar”, conta, antes de acelerar à minha frente. Ele não é o único. À nossa frente, um homem de camisa e sapato social aproveita o aluguel de bicicletas promovido por um banco.

Cinco minutos depois e voltamos a dividir a pista com carros. A ciclovia deixa saudades: a avenida está tão lotada que precisamos nos esgueirar entre os automóveis e meio fio para chegar a ruas mais tranquilas. Mais um pouco e chegamos ao Parque do Povo. A área verde tem até chuveiros para ciclistas tomarem banho. Pena que nenhum semáforo para os veículos que chegam a 70 km/h da Marginal Pinheiros.  Esperamos dois minutos para atravessar.

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As fachadas de vidro voltam a aparecer em nosso caminho, dessa vez na Av. Chedid Jaffet. À direita, pequenas multidões de pedestres apertam-se na calçada esperando o sinal abrir. Do outro lado da rua, guindastes constroem torres de 20 andares. Como os trabalhadores chegarão ali quando os prédios estiverem prontos? Penso nisso, chegamos à avenida onde Rogério trabalha, a Berrini. Pedalamos 1h15 com ele, sem contar as paradas no caminho.

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Adeus ao carro

Depois de entregar Rogério, voltamos seis quilômetros até a Editora Abril. No caminho, Roberson se detém para tirar fotos na Casa Bandeirista, uma edificação do século XVIII preservada debaixo de um prédio. Parar na frente dos monumentos é um dos prazeres que o técnico de informática descobriu depois vender o automóvel. Outro prazer foi economizar. Trocar de carro a cada dois anos custava cerca de R$ 1650 por mês a Roberson. Agora esse valor financia as viagens da família de férias, uma escola melhor para a filha e os R$ 10 de táxi para trazer compras grandes do mercado.

Mas a grande descoberta foram as áreas verdes da cidade.  Agora, a família pedala até os parques da zona sul, a filha na garupa. Ir ao shopping também ficou mais frequente – antes Roberson fugia da longa espera no estacionamento. Na periferia de São Paulo, ter um carro em casa dobra a chance de alguém não caminhar ou pedalar pelo menos dez minutos por semana, mostrou uma pesquisa da USP feita no extremo leste da cidade.

“As pessoas te olham como alguém que perdeu o status, meio que um fracassado”, ele me conta. “Mas será que esse pessoal da periferia pode pegar o carro todo fim de semana, colocar combustível, pagar pedágio e descer para Santos? Será que conseguem passar o dia na praia sem ser um farofeiro?”

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