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O projeto social e urbano por trás da Flip

Às vésperas da 11ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty, conheça um pouco dessa história inspiradora, contada pelo arquiteto paulista Mauro Munhoz.

Por Por Joana Baracuhy
Atualizado em 20 dez 2016, 22h38 - Publicado em 14 jun 2013, 22h59
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Ele parece não se dar conta. Mas a determinação do arquiteto paulista Mauro Munhoz no processo de revitalização urbana de Paraty, RJ, que tem na Flip seu desdobramento mais notório, é coisa rara. Num país onde costurar a participação da iniciativa privada e do estado – escutando o que a população local tem a dizer – mais parece tarefa para gigantes, ele narra sua trajetória repleta de percalços e sucessos com uma naturalidade surpreendente. Perguntado sobre os motivos que o levaram a trilhar o longo caminho que busca a recuperação dos espaços públicos de borda-d’água (áreas livres diante dos rios e do mar) da cidade fluminense, que já na década de 90 colecionava mazelas sociais, ele inicia um raciocínio aparentemente distante do tema, mas que faz sentido mais adiante. “Fui formado na FAU-USP para entender que até mesmo a arquitetura residencial tem uma dimensão pública. E essa dimensão pública estava bastante mal colocada em Paraty, uma cidade que mantinha o centro histórico agradável, mas acumulava problemas nas ilhas e periferias”, diz o profissional, que assina obras comerciais, institucionais e sobretudo residenciais sempre inseridas de modo delicado e respeitoso no entorno.

Era 1996 quando sua preocupação até então nascente e abstrata encontrou eco na encomenda do navegador Amyr Klink, ansioso por erguer na Ilha do Bexiga uma escola de atividades náuticas (carpintaria naval, mecânica de motores de barcos etc.) que capacitasse a população paratiense para o exercício de tradições locais, em sua maioria esquecidas ou desvalorizadas. Ao estudar o tema para levantar o projeto, Mauro percebeu aspectos profundos e variados do assunto – e mergulhou de vez. Descobriu, por exemplo, que os engenheiros militares portugueses desenharam o traçado urbano respeitando a drenagem natural da bacia hidrográfica de Paraty (soterrada após sucessivas gerações de calçamento arbitrário), acompanhou a eficácia com que Amyr conseguiu obter patrocínio para unir os cinco pavilhões da futura escola por meio de cabos de fibra óptica submarinos e soube que uma das unidades do novo empreendimento funcionaria num casarão do Engenho Boa Vista, onde nascera Julia Mann (1851-1923),  mãe do escritor alemão Tomas Mann – autor de Morte em Veneza e vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, em 1929, por Buddenbrooks. Até esse ponto, a literatura ainda passava ao largo das intenções de Mauro. Suas atenções estavam todas voltadas para o projeto do novo centro de ensino, que obteve autorização dos órgãos ambientais, mas naufragou diante dos trâmites complicados e da burocracia, capazes de derrotar até mesmo o metódico e perseverante Amyr Klink.

 

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Diante de tantas dificuldades para articular uma parceria entre a iniciativa privada e o estado, obter os licenciamentos culturais e conseguir isenções fiscais e fomentos, a escola naval fez água. Porém, impregnado pela potencialidade que acabava de descobrir, o arquiteto paulista não desistiu, apenas mudou de escopo. “Percebi que a dimensão física, histórica e geográfica de Paraty pedia o desenvolvimento de ações com paradigmas inovadores”, conta. Junto com uma técnica do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Mauro desenvolveu e apresentou então um novo projeto, voltado para as questões do patrimônio: o restauro do casarão do Engenho Boa Vista, dessa vez com sucesso e aprovação por meio da Lei Rouanet. Imbuído da causa, ele ainda levou o tema para a academia – e o saldo de alguns anos do mestrado na FAUUSP foi a vontade de promover a revitalização sustentável do cais histórico, proposta que cresceu e evoluiu para a recuperação da borda-d’água. A amplitude social cresceu depois da temporada de reflexão na universidade. “Eu me perguntava como uma cidade com uma relação tão qualificada entre os espaços públicos e privados no século 19 havia piorado tanto tempos depois. Afinal, espaços públicos de qualidade não existem sem espaços privados igualmente bons”, relembra, reconectando-se ao raciocínio pelo qual iniciou esta conversa. Na prática, Mauro observava que a população vendia suas terras nas áreas nobres de Paraty e se transferia para locais com pouca ou nenhuma presença reguladora do estado, como a assim chamada Ilha das Cobras. “Os saberes imateriais também se perdiam nesse processo”, conta.

Para avançar na nova direção, o arquiteto inaugurou outra estratégia. “Se o seu escritório for registrado como tendo finalidades culturais, você consegue aprovar seu projeto e captar recursos para efetivá-lo”: esse foi o conselho de um amigo na época, que redundou na abertura da Casa Azul, uma organização da sociedade civil de interesse público. Por meio da recém-formada associação sem fins lucrativos, transcorreram dois anos para aprovar o projeto, outros dois para captar recursos… Mas o prefeito do município não quis ir adiante. Balde de água fria geral. O que fazer? “Vamos mobilizar as pessoas partindo da dimensão cultural do lugar”, ensinou Naseeb Dajani, da ONG comunitária Global Harmony. Mauro traduziu a lição com bastante pragmatismo. Depois de tantas idas e vindas, entendeu que de nada adiantava argumentar, mesmo que munido de conceituação fundamentada e de boas ideias. Era preciso agir. E foi assim que o valor imaterial sedimentado nas planícies da cidade que escoou os ouros extraídos séculos atrás nas Minas Gerais veio à tona. Casarão, Julia Mann e a editora britânica Liz Calder, apresentada a Mauro por Amyr, inspiraram a criação de uma festa literária voltada para leitores, “não para o negócio de livros”, frisa o arquiteto. O modelo foi desenhado em parceria com vários colegas de empreitada, entre eles a própria Liz, que encomendara uma casa a Mauro Munhoz havia pouco. Sua experiência como curadora do festival na pequena Hay-on-Wye, comunidade inglesa de 3 mil habitantes, serviu de molde para a Flip.

 

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As festas similares realizadas nas cidades italianas de Mantova e Ravello, igualmente modestas e intimistas, também. A intenção por trás do evento, agendado justamente para o período mais baixo da temporada turística, porém, reside naquilo que seus criadores chamam de educativo: a ação lenta e gradual das 32 bibliotecas instaladas nas costeiras que hospedam uma gama de atividades culturais, acompanhada da qualificação urbana dos acessos existentes na beira do mar e dos rios, entre eles a praça da Matriz. Desse modo, conseguiu-se mobilizar as pessoas, fossem elas moradores ou “de fora”, comerciantes, turistas, pescadores… Mesmo assim, só em 2012, quando a Flip comemorou uma década, o cartão-postal de Paraty foi inaugurado com novo desenho e pavimentação. A impressão é que a efeméride marcou o fechamento de um ciclo que articulou patrimônio material e imaterial, cultura e educação, e a possibilidade de invenção de um novo território. Na matemática do arquiteto, porém, são necessários 20 anos para cumprir movimentos de transformação profundos, o que, nesse caso, significa retroceder e adicionar os longos dez anos de trabalho silencioso e perspectivas incertas citados no começo desta narrativa. Apesar de todas as conquistas, o futuro tampouco sugere uma caminhada sem solavancos. Um exemplo? “Paraty tornou-se disputada e cara a ponto de inviabilizar a hospedagem de técnicos e até mesmo convidados durante a Flip”, conta ele. A cidade também padece atualmente do inchaço populacional e do aumento da violência. Mas Mauro não se cansa. Convencido da importância de discutir na festa temas relacionados à dimensão humana da arquitetura, convidou para a edição deste ano o colega português Eduardo Souto de Moura e o crítico americano Paul Goldberger. Uma nova biblioteca-parque para uma zona degradada da cidade, nos moldes daquelas realizadas em Medellín, na Colômbia, também figura entre os sonhos  calentados para os próximos anos. Afinal, os desafios não terminam, mas mudam de formato – ao mesmo tempo, as respostas também se transformam. É preciso saber lê-las e interpretá-las.

 

Geografia de uma metamorfose

Lentamente, a Casa Azul se espalha por Paraty, visando expandir sua atuação. Movida pela convicção de que é preciso antes de mais nada agir, a associação levou parte da Flip para a outra margem do rio, conseguiu reformar a praça da Matriz e recentemente instalou sua sede na região degradada da Ilha das Cobras.

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1 – Transferida para o outro lado do rio Perequê-Açu em 2004, a tenda dos autores ocupou um areal, até então invisível aos olhos do poder público, e sutilmente forçou sua recuperação.

2 – A reinauguração da praça da Matriz, em 2012, foi o primeiro projeto da borda-d’água a sair do papel. Com um piso de concreto que resgata o traçado original de 1916 e rampas, tornou-se acessível a todos.

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3 – A nova sede da Casa Azul fica na degradada ilha das Cobras. A ideia é que o espaço, dotado de uma biblioteca, se insira no local, ampliando suas ações educativas.

 

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Sobretudo durante a Flip, a ponte que une o centro histórico ao bairro do Pontal fica repleta de gente.

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