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Rubem Alves: A mentira da dona Maria

Não precisa de promessa, não, para essa mulher generosa encontrar tempo para trocar prosa com Deus. Ela vai para a cozinha e prepara comida para crianças. Essa é a mais simples verdade

Por Rubem Alves
Atualizado em 21 dez 2016, 00h02 - Publicado em 4 abr 2013, 18h04
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Dona Maria é uma mulher ma­ravilhosa. Ela arruma as bagunças que eu faço. Arruma sem reclamar, sempre com um sorriso.

Confesso ser bagunçado. Ainda bem que não se trata de pecado capital. Já tentei várias técnicas para ficar organizado. Em vão. Acho que é porque meu jeito de lidar com as coisas acompanha meu jeito de lidar com as idéias ou, mais precisamente, o jeito de as idéias lidarem comigo: elas vêm em desordem, não respeitam fila, vírgula, parágrafo ou ortografia, tomam conta dessa casa que se chama cabeça, fazem uma orgia, e eu nada posso fazer contra elas. Para meu consolo, uma pessoa que não conheço e nem sabia que sou bagunçado me enviou, como presente, um lindo quadro em ponto cruz com os dizeres: “Deus abençoe esta bagunça”. Tomei isso como um sinal dos céus para que continue a ser bagunçado…

Pois descobri que dona Maria me contou uma mentira. Veio ela com o seu sorriso: “Não vou poder vir na quinta-feira da semana que vem. Será que o senhor concordaria que eu fizesse, neste sábado, a faxina que deveria fazer na quinta?” Entendi logo. Dona Maria queria um fim de semana comprido, provavelmente iria viajar, visitar algum parente, pagar alguma promessa em Aparecida. “A senhora vai viajar?”, eu perguntei. Foi essa pergunta inocente que a induziu ao pecado da mentira.

“É”, ela respondeu sem entusiasmo, deixando o assunto morrer.

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Assim aconteceu. No sábado seguinte ela veio, e até trouxe a mais velha dos cinco filhos que ela tem. Na quinta-feira seguinte, ela faltou. Pensei: “Ela está viajando…”

Viagem nada. Dona Maria me mentiu. Não quis me contar as verdadeiras razões da troca do dia de faxina. Mas a mentira tem pernas curtas. Acabei descobrindo, sem querer. É para que todo mundo saiba dos motivos que fizeram dona Maria me mentir que estou escrevendo esta crônica. Foi a irmã dela, Terê, que a denunciou.

Dona Maria estava se preparando para aquele fim de semana fazia muito tempo. Guardava o arroz das cestas básicas que recebia. Mais de 40 kg. Ela tinha um sonho. Queria fazer um almoço para a criançada do seu bairro e para os pais e as mães deles. Pois foi para isso que a dona Maria deixou de fazer a faxina no dia normal. Aquela quinta-feira seria o dia dos preparativos para a grande festa. Todo mundo da família ajudou. Todo mundo participou da felicidade de fazer comida gostosa para a gurizada.

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Quando a Terê me contou isso, fiquei pasmo. Dona Maria podia ter me contado. Eu teria ficado feliz de poder ajudar. Até gostaria de ter ido lá, participar da festa. Mas ela guardou segredo, queria fazer tudo sozinha, e até se arriscou a contar uma mentira.

Sei lá o que os teólogos vão dizer da mentira da dona Maria. Sei só o que Deus disse. E sabem o que é que Ele disse? Disse: “Quero mais”. Um pretinho lindo, brilhante, dentes brancos, sorriso enorme, prato de repetição que ele limpara com a língua. Queria mais. Deus é assim. Ele sempre aparece disfarçado. Dona Maria não O reconheceu com os olhos. Mas o coração percebeu que era Ele e ficou não cabendo em si de tanta felicidade.

A gente pensa no mistério da eucaristia, Deus convida a gente para um banquete, é o pão, é o vinho, e diz que aquilo é mais que pão e vinho, é Ele mesmo, isso é o meu corpo, Deus dá o seu próprio corpo para ser comido. Lembro-me, faz muito tempo, meu filho tinha uns cinco anos, estava tomando sopa, me perguntou: “Papai, onde é que está Deus?” Deus está em todas as coisas”, respondi eu de forma absolutamente ortodoxa. E ele então continuou de forma absolutamente lógica: “Se Ele está em todas as coisas, Ele tem de estar nesta sopa que estou tomando…” Eu não quis continuar a conversa por nada ter a acrescentar àquela sabedoria infantil suprema. Todas as coisas, no Universo, inclusive aquela sopa, são divinas, partes do corpo de Deus, de um grão de areia a uma galáxia inteira. Claro, claro, para se ver Deus é preciso ter os olhos de criança, iguais aos de dona Maria.

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Natural que Deus convide a gente para uma comidinha, “bem-aventurados os que têm fome porque eles serão fartos”, quem tem corpo tem fome. Mas Deus não deve ter fome porque Ele não tem corpo e, além do mais, sendo Deus, Ele não precisa de nada. Tudo errado. Deus tem fome. Tem fome porque Deus é amor. Amor é fome. Deus tem uma fome imensa – e Ele não pode cozinhar para Ele mesmo. A comida que mata a fome de Deus, somente nós podemos fazer. Há, então, duas eucaristias. Uma é aquela que acontece na Igreja, o pão e o vinho, o corpo e o sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo. Outra é aquela que acontece no mundo – comida para matar a fome de Deus, disfarçado em pobre, em criança, em mendigo, mas não só. Disfarçado também de gente que não tem fome. Os que têm fome são abençoados porque sabem que têm fome. Os que não têm fome, coitados, não sabem que não se vive só de pão e de comida. Para se viver é preciso aquela alegria que aparece no sorriso da dona Maria.

Perguntei para ela se era uma promessa. “Não, não foi promessa, não. Eu só tive vontade de fazer comida para as crianças…” Teve vontade e fez.

 

Rubem Alves nasceu no interior de Minas Gerais e é escritor, pedagogo, teólogo e psicanalista.

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