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Paulo Baía: “Brasileiro voltou a se encantar pelas questões públicas”

Segundo o sociólogo e cientista político carioca Paulo Baía, o brasileiro voltou a se encantar pelas questões públicas. E, ao exigir transparência, repactua com o país.

Por Texto: Raphaela de Campos Mello | Fotos: Arquivo Pessoal | Ilustração: Gustavo Duarte
Atualizado em 20 dez 2016, 23h05 - Publicado em 17 out 2013, 19h08
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Entre as múltiplas vozes proferidas nos últimos meses na tentativa de iluminar as engrenagens das manifestações que se espalharam pelo país, uma em especial retumbou aos quatro ventos na imprensa. Ela pertence ao carioca Paulo Baía, sociólogo, cientista político, militante dos direitos humanos e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Estudioso das disciplinas por ele batizadas de sociologia das cidades e das emoções – estudo da relação entre cidades, poder e comportamento político-social –, Baía elucidou fenômeno tão inédito quanto difícil de ser enquadrado numa moldura única. Explicou, apontou, debateu, criticou e pagou por isso. Em julho passado, ao sair de casa para a caminhada diária pelo Aterro do Flamengo, bairro da capital fluminense, foi vítima de um sequestro-relâmpago. Homens armados e encapuzados deram o recado: “Não fale mal da polícia militar em entrevistas” – pouco antes do episódio, o pesquisador havia condenado publicamente a inércia de policiais diante dos saques praticados no Leblon e de outros atos criminosos. Acuado, ele se afastou da cidade por algumas semanas e retornou fortalecido. “Não posso me calar, pois estaria ferindo o direito à liberdade de expressão, direito este duramente conquistado”, justifica. Confira, a seguir, o que o acadêmico de ascendência indiana e, por isso, seguidor do hinduísmo, do budismo tibetano e do sufismo tem a dizer – felizmente, em alto e bom som – sobre os rumos deste gigante-pátria, segundo ele, mais acordado do que nunca.

O que fez seu interesse se voltar para a temática das reivindicações sociais?

Venho estudando questões relacionadas à violência, à criminalidade e às favelas ao longo de dez anos. Percebi que havia algo novo – as domésticas estavam querendo outra coisa na vida, assim como a mão de obra da construção civil. Até então, só havia um entendimento do ponto de vista econômico (essa população está consumindo mais iogurte, carro, geladeira etc). Parava aí. O que eu me perguntei foi: “Se elas estão consumindo tais itens, que sentimentos e emoções passam a ter?”

E o que o senhor descobriu?

Acontece que o Brasil não possui mais uma imensa base de pobres, uma pequena classe média e um pequeno número de ricos. Temos poucos ricos muito ricos, poucos pobres muito pobres e uma ampla classe média. E o indivíduo não vira classe média só porque passa a comprar TV e computador, carro ou moto. Ele passa a desejar como classe média, ou seja, muda seus valores. Quer ser bem tratado, respeitado, quer que as instituições funcionem e deseja participar do processo decisório. Esses anseios comuns uniram movimentos tão diferentes.

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Os sintomas da insatisfação coletiva que eclodiu recentemente por todo o país já se faziam notar no cotidiano?

Há pelo menos sete anos, os sintomas eram perceptíveis, mas não na extensão e na proporção de agora. Existia uma indignação aqui, outra insatisfação ali. A surpresa foi o catalisador: o aumento da passagem de ônibus, que levou milhões às ruas. Mais de 3 700 municípios registraram manifestações. Um fato inédito.

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É possível identifcar temas essenciais no emaranhado de protestos?

As pessoas querem que as instituições funcionem e, para tanto, a corrupção precisa ser exterminada. Esse é, digamos, o macrotema. Mas cada grupo passou a reclamar seus desejos. Em Niterói, vi cerca de 80 moças exibindo a placa: “Queremos um marido de verdade, que nos respeite, pois, para fazer sexo, não falta homem”. Os repórteres à minha volta acharam um absurdo. Mas pedi que reconsiderassem os dizeres. Elas estavam clamando por respeito. Trouxeram à tona a questão de gênero, denunciando o machismo. Há pautas diferentes, mas unidas por um sentimento comum. Repito: todos esses grupos querem ser reconhecidos, respeitados e participar do processo decisório. Lembro que no início das minhas pesquisas, me inspirei no livro Hello Brasil, do psicanalista italiano Contardo Calligaris. Nele, um estrangeiro apaixonado por esta terra tenta entender por que os brasileiros dizem que o Brasil não presta. Ele concluiu que isso se dá porque o Brasil não deixa seus filhos entrarem na própria pátria. Só que agora queremos entrar e participar, por isso gritamos: “O Brasil é nosso”.

Emoções como revolta, indignação e raiva podem gerar mudanças efetivas ou correm o risco de se limitar ao alarde?

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Nas manifestações havia indignação, mas não ódio, a não ser em grupos isolados. No geral, havia esperança de que o mundo pode mudar e, ao mesmo tempo, aversão a todas as instituições – partidos políticos, sindicatos, universidades, imprensa. Mas para que a emoção se converta em mudança é preciso que as instituições tenham ouvidos sensíveis e não tentem manipular esse sentimento. Não adianta somente reduzir o valor da passagem de ônibus porque o incômodo vai continuar. Agora, se as instituições começarem a se abrir para a participação popular e passarem a funcionar… O sujeito precisa entrar na escola e no posto de saúde e sentir que é bem atendido; precisa constatar que o transporte público oferece qualidade. Aí as instituições  provam não só que começaram a mudar mas também que estão a serviço de quem sempre deveriam estar.

Ou seja, esse movimento que afora depois de tantas décadas em que a nação parecia reprimida – provavelmente como resultado de anos de ditadura militar – é um despertar. Nesse sentido, as pessoas estão despertando para quê?

Elas se politizaram, se encantaram por fazer política, o que leva nossos políticos ao desespero, porque a população não quer mais as mesmas figuras. Elas estão sendo expulsas da zona de conforto. A massa da população hoje quer ética e dignidade tanto na vida pessoal quanto na pública e identifica que os políticos, ou quem está à frente das instituições, não representam tais anseios. Um exemplo emblemático é o que está acontecendo com os julgados no esquema do mensalão. Os valores dos velhos patrimonialismo e clientelismo brasileiros, bem como da falta de participação política, estão sendo enterrados em nome de valores como dignidade, ética e honestidade pessoal e pública. Isso é esperança. É passar o país a limpo.

Essa é uma postura de país jovem?

A maior parte dos manifestantes está na faixa dos 14 aos 35 anos. O Brasil atual não é jovem nem velho. É um país maduro. Essa fatia populacional pode até não ter escolaridade, mas tem acesso à informação pela internet. São os novos formadores de opinião, uma vez que que ajudam a moldar a visão de mundo de seus pais e avós. Tanto é que, segundo o Datapopular, 89% da população brasileira apoia as manifestações e 92% é contra qualquer tipo de violência.

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A violência, seja ela praticada por parte da polícia, seja por uma parcela de revoltosos, é incontornável em se tratando de manifestações de grande porte?

Ela pode ser controlada, mas todo movimento de massa embute a possibilidade de violência. No Carnaval carioca deste ano, o cordão do Bola Preta levou às ruas mais de 1,8 milhão de foliões. Teve depredação, tumulto, pessoas passaram mal, foram imprensadas e pisoteadas. No meio da multidão havia tanto bandidos quanto adeptos do vandalismo pelo vandalismo. E se, nessas condições, um grupo comete uma infração, perde-se o controle. Em junho, a polícia militar deliberadamente praticou atos de violência assim como criminosos inspirados por motivações diversas. Nas manifestações pregressas de grande porte, bem diferentes destas, tais como as Diretas Já e o enterro do presidente Tancredo Neves, por existir comando e liderança por parte dos manifestantes, havia mecanismo de segurança interna. Dessa vez não. Como há centenas de líderes e o processo de comunicação é mediado pelas redes sociais, fica mais difícil o controle.

O senhor cogitou se calar após o sequestro relâmpago?

Num primeiro momento, tive que bancar o forte, mas duas semanas depois me bateu muito medo, pois corri um risco real. Por isso, me afastei do Rio. O recado foi direto: “Não fale mal da polícia militar do Rio de Janeiro em entrevistas”. Os sequestradores mostraram armas, mas não me agrediram fisicamente, apenas psicologicamente. Depois do afastamento, voltei a participar de debates. Sou um estudioso e tenho o direito de manifestar o que estou estudando, assim como o jornalista não pode admitir a censura. Classifiquei esse episódio como um atentado à liberdade de expressão e não a mim pessoalmente. Não posso me calar, pois estaria ferindo o direito à liberdade de expressão, direito este duramente conquistado. Abrir mão das liberdades de expressão e de imprensa significa abrir mão do estado democrático de direito.

Autoridades policiais o procuraram para esclarecer esse episódio? Houve alguma receptividade?

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Várias vezes. A Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro (PCERJ) e o Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) estão fazendo um bom trabalho de investigação. Também me ajudam muito com orientações pontuais. Desde o início, ambas as entidades foram muito perceptivas em relação ao meu caso e a mim como ser humano.

Apesar dos percalços, o senhor insiste na palavra esperança. Estamos assistindo à retomada das utopias?

Em que acreditar para construir um futuro melhor? Identifico uma utopia, mas, curiosamente, uma utopia não revolucionária, uma utopia de classe média, que deseja e se implica para que a sociedade funcione. Até então, a sociedade brasileira não tinha se pensado como classe média, somente a partir da divisão entre muito ricos e muito pobres. Prevalecia a ideia de diminuir a desigualdade social, mas não de pensar que no Brasil predomina a classe média há uns 20 anos pelo menos – por isso, discordo do conceito nova classe média. Essas pessoas querem mais do que consumir. Querem trabalho digno, respeito, possibilidade de mobilidade social, bons hospitais, escolas, transporte.

O que cada um de nós pode fazer em prol deste macroprojeto que é a reinvenção de um país?

As instituições precisam se abrir para as vozes das ruas e nós temos que exigir que isso aconteça de fato. A minha universidade realizou recentemente uma reunião aberta do conselho universitário. Foi a primeira vez em que isso foi feito. E agora os manifestantes querem que todas as reuniões sejam abertas. É possível. Basta pensarmos em novas formas de participação que não podem ser de cima para baixo, e sim horizontais, como o processo comunicativo de hoje. Essas pessoas querem mais do que consumir. Querem trabalho digno, respeito, possibilidade de mobilidade social, bons hospitais, escolas, transporte. Querem ser bem tratadas – já que sempre foram maltratadas – e, para isso, o dinheiro público tem que ser bem usado, portanto condenam a corrupção.

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Quando o senhor olha adiante, o que enxerga no horizonte?

Vejo uma perplexidade generalizada e uma esperança em ação que não brota só dos jovens, pois pertence a 90% da população brasileira. Mesmo sem sair de casa, o povo está agindo por meio de seus computadores e telefones celulares, uma vez que a virtualidade produz emoções concretas. O sentir gera comportamentos reais (às vezes coletivos como no caso das manifestações). Trata-se de uma rede extremamente viva.

Como um veículo tão sem fronteiras como a internet cria unidade entre cidadão, poder e política?

Pelas emoções e pela possibilidade da fala direta, sem intermediações.

Pode nos contar qual a sua relação com os direitos humanos?

Atuo na defesa dos direitos individuais, coletivos e difusos desde 1982. Meu trabalho é defender pessoas contra o Estado nos três níveis: municípios, estados e União Federal.

O senhor é seguidor do hinduísmo, do budismo tibetano e do sufsmo. Em que medida essas flosofas orientais o ajudam a compreender a sociologia das cidades?

Sou descendente de indianos e também me aproximei muito dessas filosofias por estudar a obra do economista indiano Amartya Sen, ganhador do Nobel de Economia em 1998 por ter criado o conceito de economia solidária. Ele investigou como os milhares de pobres sobrevivem na Índia e descobriu o poder da solidariedade ligada à religiosidade. Essas correntes orientais me fazem compreender a sociologia das cidades com base em um sentimento: a compaixão. Sem pieguismo, culpa nem pena de ninguém, mas com amor transbordando por tudo e todos. Aprendi a nunca julgar. Procuro entender a lógica e os motivos dos outros pelo ponto de vista alheio. Não preciso concordar com eles. Tenho é que compreendê-los.

No cotidiano, como o senhor cultiva a espiritualidade e o autoconhecimento?

Uma das minhas principais atividades nesse sentido é a meditação. Medito todas as manhãs e também antes de dormir. Intercalo modalidades passivas e ativas, tais como ioga e dança circular. A própria caminhada diária pelo bairro do Flamengo, onde moro, funciona como um momento de conexão com essa esfera mais espiritual e fonte de equilíbrio.

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