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Luiz Felipe Pondé filosofa sobre fé e religião

O pensador e cronista pernambucano Luiz Felipe Pondé é um peripatético. Como Aristóteles, adora filosofar ao ar livre enquanto caminha. Batemos um papo com ele.

Por Texto: Kátia Stringueto | Foto: Flavia Watanabe | Ilustração Gustavo Duarte
Atualizado em 14 dez 2016, 12h17 - Publicado em 17 dez 2013, 21h38
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A patrulha do politicamente correto não pega o filósofo, psicanalista e escritor Luiz Felipe Pondé. A do ateísmo também não. Embora declare-se ateu, o professor de ciências da religião tem uma ideia elegante de Deus e chega a dizer, citando o pensador inglês G. K. Chesterton: “A história dos últimos séculos nos provou que, quando deixamos de acreditar em Deus, sempre acabamos acreditando em qualquer bobagem como ‘história, natureza, ciência, energias, política, em si mesmo, tanto faz’”. Por essa forma de falar, o professor parece flertar com a possibilidade de ser agnóstico. Mas que não esqueçamos seu lado cético. Autor do recém-lançado Contra um Mundo Melhor, Ensaios do Afeto (editora Leya) e âncora do programa Peripatético (TV Cultura), Pondé incomoda o interlocutor para motivá-lo a sair da neutralidade. Acostumado a gerar controvérsia, defende mesmo é seu direito a voz. Fez tudo o que a academia pediu para depois seguir um caminho que é só seu, de ninguém mais. Talvez seja isso o que ele mais tem a ensinar: que é possível pensar diferente, não concordar com tudo e ainda assim ser tolerante. Num começo de tarde, em sua sala na Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Álvares Penteado, em São Paulo, o professor recebeu BoNS FLuiDoS para uma interessante conversa sobre as expressões da espiritualidade. Vestido com paletó, camisa branca, jeans e tênis, parecia uma figura blindada até a primeira resposta, quando ficou claro que ele estava armado apenas de ideias, sem rigidez.

Sua mulher é discípula de Guimaraes Rosa, para quem “quanto mais religião, melhor”. Como é a convivência com você, um ateu confesso?

A maior parte do tempo é muito simples porque, apesar dela ser judia, ir à missa, pesquisar candomblé e adorar igreja, não é algo imposto para mim. Recentemente, ela me puxou para dentro de uma catedral no Chile. Enquanto ela rezava, fiquei escutando o padre, as músicas, e esse tipo de coisa me faz muito bem. Não tenho preconceito. Daí começa a coisa simples. Eu sempre a acompanho à sinagoga, tenho uma relação estética com o culto, o cheiro do incenso, mas não sou religioso, não tenho necessidade de religião.

Na sua opinião, a necessidade de religião é psicológica. Pode explicar?

Acredito que a maior parte das pessoas precisa de um ritual prático, uma crença metafísica que justifique o seu sofrimento. o ser humano dói. É finito, sabe que é, vai morrer, perde quem ama, o mundo é violento… e a religião funciona como uma espécie de bálsamo para a dor da condição humana. Você fica com as pessoas que creem a mesma coisa que você,conversa, troca ideias, experiências. Não tenho essa estrutura.

Mas o ateu também tem espírito. Você sente mais dor já que não pode contar com esse bálsamo?

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Eu, normalmente, apesar de escrever sobre a dor da existência, não sou uma pessoa que tenha angústias metafísicas. Tenho uma vocação natural para o concreto, me preocupo com problemas, coisas que quero resolver. Raramente penso na minha morte, por exemplo. Vivo o dia a dia completamente dentro das coisas que eu faço. E isso significa que as emoções são boas e são ruins.

Não sente inveja de quem tem fé quando atravessa um momento difícil?

Exatamente aí é que se manifesta o que estava dizendo. Não fico me perguntando porque tal fato aconteceu comigo. Algo diferente entre mim e a maioria dos ateus que conheço é que eu não tenho bode de Deus, não tenho raiva Dele, nem acho que sacaneou ninguém. Já vivi a perda de pai, mãe e uma irmã que morreu dois anos atrás e, nesses momentos, não é que não exista sofrimento, mas não é um sofrimento pautado por revolta ou que exige explicação. Aceito. Me aceito como mortal. Agora, tenho alma, sou muito sensorial. Vou para a ópera e choro, as sensações regem a forma como me relaciono com o mundo.

Há espiritualidade sem Deus?

Sim, uma vez que muita gente busca formas de sentido imaterial e não encontrar uma religião. É o meu caso. Passei a estudar textos místicos para entender o que acontecia comigo e encontrar outras pessoas que sentiam como eu. Para mim, é uma sensação estética. Existe uma beleza que sustenta o mundo; a da misericórdia. E isso me dispõe para o mundo, me liga às pessoas.

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Deus pode existir nessa beleza?

Pode. Mas não estou preocupado se Ele existe ou não.

Você brinca que se tornou ateu aos 8 anos. Como é realmente essa história?

Me lembro de um aniversário de 8 anos; eu estava tomando banho e pensando nessa coisa de Deus… Eu era obcecado pela lua, por astronautas – Neil Armstrong foi o grande herói da minha infância –, mas me dei conta de que a gente falava com Deus e ele nunca respondia. Então pensei: “Acho que Deus não existe”. E, de fato, nunca senti necessidade de que existisse um ser superior e nem acho, filosoficamente, que é fundamental a existência de um ser superior.

Qual a diferença entre místico e esotérico?

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Do ponto de vista de um estudo mais apurado de religiões, o esotérico é uma palavra malvista, que percorre um conjunto de crenças de forte apelo de autoajuda e baixo conteúdo filosófico. Mística por outro lado é uma palavra tecnicamente respeitável. Significa uma tradição que pode haver no budismo, judaísmo e que fala de uma experiência direta de transcendência. Sem mediação, como eu explicando para você o que é Deus. Também não é um texto que está dizendo aquilo – apesar de o texto poder levar a essa experiência. Os medievais chamavam a isso de conhecimento experiencial. Mística significa algo que está escondido, misterioso, para iniciados. Daí a relação com o esoterismo (o interesse pelo oculto).

À época do flme Anticristo, de Lars Von Trier,você escreveu na sua coluna da Folha de S.Paulo que o flme falava sobre o mal e que o mal a gente respeita.

Aquele filme fala de uma concepção de mal. Fala que a natureza é cruel; ela cria, destrói, cria, destrói. Para continuar vivo você tem que destruir outro ser vivo. Existe dor. O filme retrata a mãe, representante da natureza, como má. A personagem (interpretada por Charlotte Gainsbourg) torce o pé do filho em diferentes momentos e, para não interromper um momento de prazer, o deixa cair da janela. Ela está transando com o marido e poderia parar tudo e salvar o menino, mas não o faz. Vejo, então, como uma crítica que cabe ao que dizem muitos antropólogos e psicólogos hoje em dia. Há uma modinha de dizer que o mal é relativo, é fruto de uma mãe que batia em você, ou de uma vida desgraçada. Mas o fato é que a experiência de algo desordenador existe, é natural, e merece atenção. Quando uma pessoa dominada pela inveja quer destruir você, melhor não achar que é bobagem.

Às vezes, não é tão fácil perceber (risos).

Se você me perguntar o que é o bem, o mal eu posso dizer que a melhor definição que conheço de bem e mal é que o bem é gerador, generoso, abundante – isso é Platão –, da própria natureza dele, ele se doa. O mal é incapaz de criar, ele só copia – isso é Joseph Brodsky –, não consegue colocar algo onde não havia nada. Uma das coisas que mais admiro na história dos santos é quanto são conscientes da imperfeição que existe neles. São Francisco de Assis, Santa Terezinha, Santo Agostinho tinham consciência de como neles está a inveja, o orgulho. E saber dessa imperfeição, da distância que os separa de Deus, é justamente o que na minha opinião os coloca mais próximos Dele. Daí que vem o pau sistemático que dou nas novas espiritualidades. Essa coisa do budismo light que não quer matar forma alguma de vida, com cristal na bolsa, um pouco de física quântica, e achar que dez minutos de meditação por dia resolve, é extremamente narcísica. A grande preocupação dela é fazer o ser humano se sentir bom. E isso é distante de qualquer tradição espiritual consistente.

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Mas há uma necessidade humana de descobrir um sentido para a vida.

Diria que toda espiritualidade verdadeiramente séria começa com um processo de consciência do mal que está em você e do seu justo lugar no mundo. Quando se salta esse passo, o que se está fazendo é marketing moral.

Você diz que não somos o eixo do mundo. Pode comentar?

Há uma questão de mercado nas novas espiritualidades que é vender uma coisa para a pessoa ler e se sentir legal. Ao contrário, a espiritualidade profunda – seja budista, islâmica, católica, hinduísta etc. – está sempre fincada numa experiência de esvaziamento do eu, de descentramento de valor. É típico do eu inflado, por exemplo, achar que o principal problema da vida é se sentir amado, quando na realidade o mais importante é ser capaz de amar. Em vez da cultura narcísica em que a preocupação primeira é o direito a ser amado, a espiritualidade profunda propõe muito mais eu ser capaz de amar. Santo Agostinho diz: “Se você quer ser livre, ame”. Porque isso liberta você de você mesmo. Os melhores dias da nossa vida não são os que lambemos as nossas feridas, mas aqueles em que estamos envolvidos com pessoas. Isso chamo de descentramento. Outro exemplo: estudos mostram que grandes templos vazios provocam essa noção de tamanho e descentramento ao mostrar quão pequenos somos. Uma igreja, uma sinagoga, me causam essa sensação sublime. Sou mais receptivo, paciente, me vejo como alguém que depende de um número enorme de pessoas e da boa vontade delas.

O milagre é não sermos tristes, Pondé?

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Essa é uma das coisas que me encanta, espanta e interessa. Estudei psicanálise dez anos, mas talvez exista algum conteúdo da natureza humana que predispõe fortemente a resistir às evidências de que a vida é inviável. A gente é capaz de perceber no meio desse mundo interesseiro momentos de alegria, de uma beleza que não sei de onde vem. São mistérios profundos. E não parecem brotar daqui. Os católicos dizem que brota de Deus. Então, apesar de não ser religioso, acho que a tradição tem um profundo conhecimento da condição humana no sentido de que quando o homem para de achar que ele é o centro talvez consiga se sentir muito melhor.

Até parece que você acredita num mundo melhor.

Existe um conto que fala do sonho do homem ridículo. É a história de um sujeito que chega à conclusão de que a vida não vale a pena e decide se matar. Nessa hora, uma menina pede ajuda porque a mãe está doente. Ele a empurra, vai para casa, tenta se matar e não consegue. Dorme e sonha com um lugar lindo e cheio de paz, mas a medida que ele passa a questionar as pessoas do lugar gera discórdia, todo mundo começa a brigar e ele acorda. Aí ele desiste de se matar e vai procurar ajudar a menina. Por quê? Porque descobre que tinha sido a serpente do paraíso e que esse pensamento dele de achar que o mundo é uma merda e que ele era superior não adiantava nada. Ele sai da depressão quando percebe sua vaidade e a responsabilidade que tem no mundo.

Há leitores que amam e outros que odeiam você. O que aprende com esse paradoxo?

A escrever cotidianamente. Hoje, vive-se um estado de quase censura. Mas não adianta todos falarem a mesma coisa, muito menos ter medo dos ofendidos. Não me sinto ridículo nas minhas opiniões filosóficas porque sou estudioso e as fundamento. Fracasso quando provoco sofrimento. Mas isso também me humaniza.

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