Amorim Lima: uma escola pública diferente
Conheça uma instituição pública de ensino que encoraja os alunos a trilharem seus próprios caminhos, dando a eles mais autonomia e liberdade de expressão.
“Antes de me mudar para cá, minha mãe falou que a escola era bem diferente. Disse que não tinha classe, não se usava lousa e as matérias eram dadas juntas. Achei estranho demais!”, fala a cearense Alice Magalhães Ribeiro, de 13 anos, aluna do 8º ano da Escola Municipal de Ensino Fundamental Desembargador Amorim Lima, localizada no bairro do Butantã, em São Paulo. Assim como ela, quem chega à escola sente, de imediato, espanto e curiosidade. Lá, tanto a metodologia pedagógica quanto a estrutura física e as instalações são bem diferentes das instituições públicas de ensino do país, geralmente precárias e com um ensino desinteressante. Conheça a fanpage atualizada pelos pais
Como funciona o projeto
Essas mudanças de conceito, estrutura e pedagogia foram inspiradas no projeto pedagógico Fazer a Ponte, da Escola da Ponte, na cidade do Porto, em Portugal. Referência na área da educação, a escola propõe uma formação mais autônoma para os alunos, que aprendem a ser responsáveis e comprometidos tanto com seus estudos quanto com uma uma sociedade mais participativa e coletiva. E não é só isso. Em 2002, dois anos antes da implementação do projeto, uma pesquisa levantou os principais problemas daquele universo escolar. Dentre eles estavam indisciplina, alto índice de evasão de alunos, aulas vagas devido à elevada ausência de professores. Sem contar que, quando se iniciou uma discussão mais profunda sobre o projeto pedagógico, ficou claro que o pouco do que ali se propunha não estava sendo realizado na prática. Foi nesse momento que o projeto português, apresentado pela psicóloga Rosely Sayão – interlocutora da escola desde 2001 –, veio ao encontro dos valores da instituição e do desejo dos pais. Dessa forma, ele foi incorporado em todas as classes em 2006. Só para ter uma ideia da amplitude da mudança, no primeiro e no segundo andares do prédio da escola, as paredes que dividiam algumas classes foram derrubadas e, em vez de uma sala de aula para cada turma, há dois salões de estudos, um para o chamado ciclo 1 (do 1º ao 5º ano) e outro para o ciclo 2 (do 6º ao 9º ano). Nessa mudança, o quadro-negro permaneceu, mas não exerce nenhuma função, já que não há exposição de conteúdo das disciplinas – exceto inglês, português e matemática, dadas em outras salas menores. Isso porque as disciplinas exigidas pela grade curricular do Ministério da Educação (MEC) são interligadas e ensinadas por meio dos Roteiros Temáticos, compostos (em média) de 20 temas dados ao longo do ano. Por exemplo, o tema Moradia abrange as matérias de geografia e história; já Juventude e Leitura inclui português, ciências, geografia e matemática.
Essa pesquisa temática é feita em grupos de até cinco estudantes, todos da mesma série. “Quando a gente pega o roteiro, abrimos uma roda de discussão para entendê-lo. Conversamos com os colegas e professores até ficar claro. Só depois é que iniciamos o trabalho”, explica a aluna Alice Ribeiro. Nãohá uma ordem para fazê-lo, cada aluno escolhe por onde irá começar. “Além dessa liberdade, eles fazem todo o planejamento de estudo, e só chamam o professor quando precisam de ajuda para organizar a agenda ou tirar dúvidas”, diz a diretora, Ana Elisa Siqueira. A escola também não tem provas.“No final de cada roteiro as crianças fazem uma ficha de finalização a respeito das atividades realizadas”, conta Ana Elisa. Cada trabalho é avaliado pelo professor para saber tudo que o aluno desenvolveu. E, ao final do semestre, um relatório geral feito pelo educador é entregue aos pais.
Qual o papel dos professores
Nesse clima de liberdade, vira e mexe impera entre os docentes a dúvida de qual seria o papel deles. “Não há uma receita bem definida como na escola tradicional, em que você chega, sabe o que vai dar, o que tem de fazer e vai embora. Aqui o aluno é quem o convida a ensiná-lo”, fala a professora Cleide Maria de Oliveira Portes, que está há oito anos na escola. Aos poucos, os educadores vão encontrando seu lugar. “Dentro desses espaços, somos responsáveis por todos os estudantes. Devemos estar prontos para qualquer chamado ou solicitação, a fim de tirar todas as dúvidas possíveis”, fala a professora veterana. Porém muitas vezes tanta autonomia divide ambas as partes. “Quando não se sabe lidar com essa proposta pedagógica, a confusão se instala em todo mundo – estudantes e professores. E cabe a nós ajudar os alunos a construir uma responsabilidade sobre a liberdade dada a eles”, diz Cleide. A essa altura você deve estar se perguntando como crianças ativas, cheias de energias e plugadas na tecnologia conseguem se concentrar e se organizar nesse universo tão liberto. “É preciso ter foco e eu tenho quando quero. Embora me disperse facilmente, logo retomo o caminho para não ficar para trás e atropelar meu cronograma”, conta Manuela Salatini Toledo, 14 anos, que está no último ano e estuda ali desde o 1º ano. Nessas horas, também cabe ao professor tomar as rédeas e dar um empurrãozinho para que bonde não pare. Para isso, uma vez por semana, o educador vira um tutor que cuida de três a quatro grupos de turmas de idades diferentes.
Nessa função, ele deve acompanhar de perto o que cada aluno está fazendo. “É o momento de olhar as tarefas feitas e averiguar como estão sendo construídas para ver se o aluno está fazendo a lição, se tem dificuldade ou se só está brincando por aí”, explica Ana Elisa. Para ela, a disciplina e a responsabilidade podem ser ensinadas dando mais autonomia aos jovens, e não à base da obrigação ou punição.
Como os alunos crescem livres e conscientes
Ali, o aluno não anseia desesperadamente pela hora do recreio – como acontece geralmente na maioria das escolas. Primeiro porque a famosa “sirene de fábrica” não existe.“Aqui o sinal está dentro de cada da criança. Elas sabem as horas das aulas”, afirma Ana Elisa. Segundo, porque elas não ficam presas em uma sala fechada. Além dos roteiros e dasoficinas de matemática, português e inglês, os alunos fazem outras atividades, como danças brasileiras, capoeira, artes, teatro, laboratório de ciência, cultura corporal. E é ao longo dessas oficinas que os estudantes são testados mais uma vez. “Se você observar, durante esse troca-troca de horário, verá uma movimentação muito grande. Isso exige uma responsabilidade enorme, porque eles podem cabular uma aula, bater um papo, se atrasar. E isso acontece”, conta Cleide. Quando isso ocorre, eles têm de justificar aos professores os motivos da ausência ou do atraso. “É aí que começam a se sentir irresponsáveis, e isso os faz refletir”, fala Ana Elisa. E, em meio a tantas conquistas, a maior talvez seja a liberdadede expressão, importante para formar os alunos e prepará-los para atuar em uma sociedade cada vez mais exigente, conforme crê a professora Cleide. “Aqui a gente é muito incentivadoa estudar, a ter responsabilidade e a soltar a voz!”, arremata empolgada a aluna Manuela Salatini Toledo. “Tudo o que acontece na escola passa pelos ouvidos dos alunos. “Quando notamos que falta algo, nos organizamos , explicamos os motivos e reivindicamos o necessário”, completa a colega Alice Magalhães Ribeiro, de 13 anos.
O trabalho dos pais e amigos do Amorim
Se por um lado o projeto Escola da Ponte, de Portugal, colaborou para a transformação da EMEF Desembargador Amorim Lima, por outro a mudança muito se deve à participaçãoda comunidade nas atividades da escola, como a mobilização de todos nas festas culturais, que passaram a ser realizadas em maior número. Outra alteração positiva foi a criação de oficinas que retratam, por exemplo, a cultura brasileira. Ações como essas foram facilitadas também graças a uma importante mudança na estrutura administrativa das escolas públicas municipais de São Paulo. Até 1992, elas tinham um conselho consultivo escolar – nele, o diretor decidia tudo sozinho. A partir daquele ano, passou a valer o conselho deliberativo, por meio do qual pais e alunos podem opinar sobre os rumos da escola. “À medida que eles começam a participar de tudo, passam a cobrar as faltas de funcionário, de professor, de atitude, de limpeza, e apontar nossas falhas. A participação da comunidade é rápida quando ela descobre que pode melhorar o espaço onde o filho está sendo educado”, afirma Ana Elisa.