O projeto de restauro do Instituto de Arquitetos do Brasil
A falta de providências para conservar a sede paulista do Instituto de Arquitetos do Brasil comprometeu a condição do prédio de 1951, assinado por Rino Levi
Outro dia, uma senhorita me agarrou aqui na porta. Já fui chamado até de velho gostoso por mulheres que frequentam as boates da rua”, conta Paco Jordan. Seu parceiro, o arquiteto Haron Cohen, com quem mantém há mais de 30 anos um escritório na sede paulista do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), emenda outra questão, que muda o clima da conversa de cômico para tragicômico: “Deixamos de trazer alguns clientes aqui porque a vizinhança assusta”, declara, referindo-se à movimentação de boates, prostíbulos e pequenos hotéis que funcionam durante o dia na rua Bento Freitas. Um deles, vizinho de parede do instituto. Apesar da crítica justa à situação dessa área comercial no centro da cidade, o semblante do prédio do IAB-SP também deixou há tempos de passar boa impressão aos transeuntes. O lugar, símbolo da arquitetura moderna, inaugurado em 1951 com assinatura de Rino Levi (1901-1965), está longe da vitalidade de outros tempos – épocas áureas em que funcionava como influente polo cultural e político, reunindo intelectuais de vanguarda de todo o mundo.
Hoje, a fachada exibe caixilhos de ferro enferrujados, paredes pichadas, beirais descascados. E a parte da calçada localizada na rua General Jardim está interditada por tapumes desde 2010. A vedação isola escoras que dão suporte à marquise do primeiro pavimento, estrutura danificada que preocupava os arquitetos. A direção atual declara, confiante, que o projeto de restauro – muito discutido e defendido por gestões anteriores – deve finalmente sair do papel e estima o início das obras para setembro. No cargo de presidente do instituto desde 2012, o arquiteto José Armênio de Brito Cruz enxerga a reforma como o símbolo de um novo começo para a entidade, que teve reduzida sua influência cultural, política e social. “A luta é principalmente para restabelecer o papel da arquitetura na sociedade”, revela Armênio, sócio do renomado escritório Piratininga Arquitetos e Associados. Avaliado em quase R$ 9 milhões, o projeto de restauro foi aprovado pela Lei Rouanet em 2011, mas as negociações para captar o montante com empresas interessadas seguem em aberto. Foi lançada uma campanha no site do IAB-SP para arrecadar doações a partir de R$ 25 a fim de ajudar na obra. O esforço visa a resgatar a imponência do espaço de importância histórica para a articulação da classe. Traçado em 1947 por Rino Levi, Abelardo de Souza, Galiano Ciampaglia, Miguel Forte, Hélio Duarte, Jacob Ruchti, Roberto Cerqueira César e Zenon Lotufo, o prédio de oito andares foi pensado como um local para a discussão de questões urbanas e de como os arquitetos deviam atuar para chegar a uma cidade mais democrática. Nasceu como a representação de um novo pensamento, graças aos esforços dos partidários dos ideais modernistas.
Quando o prédio foi desenhado, não havia na região nem sequer o icônico edifício Copan ou o Terraço Itália, e ainda estavam para sair do papel outras obras modernistas emblemáticas da cidade, como o Parque do Ibirapuera e o Masp. A construção se deu graças a uma “vaquinha” organizada por personalidades influentes que apoiavam a iniciativa, entre elas Oscar Niemeyer e João Batista Vilanova Artigas. Depois de pronto, o edifício passou a funcionar parte como um espaço aberto à sociedade, onde aconteciam as atividades do IAB-SP, e parte de maneira privada, já que os pisos superiores do prédio receberam escritórios de arquitetos. A distribuição segue assim até hoje. Além dos autores do projeto, outros mestres modernistas mantiveram seus estúdios ali, como Vilanova Artigas, que trabalhou na sede desde a fundação, em 1951, até o ano da sua morte, em 1985. “Construíram o IAB-SP baseados nas ideias da arquitetura moderna, numa época em que a produção brasileira atraía olhares do mundo todo. Conseguiram ainda o feito de erguer a cidade mais moderna do mundo”, revela Armênio sobre o plano de Brasília. Mas a vitalidade do prédio começou a esmaecer com a chegada da ditadura. O golpe de 64 trouxe a censura e integrantes do instituto foram caçados. Um dos ativistas a perder o direito de exercer a profissão foi o arquiteto Paulo Mendes da Rocha, que continua trabalhando no edifício até hoje. Especialmente durante o período de falta de liberdade, os membros do IAB mantiveram o papel de liderança política. Segundo Armênio, o corpo do líder guerrilheiro Carlos Marighella foi velado dentro do IAB-SP porque nenhuma outra entidade aceitou recebê-lo. Com a abertura política, veio a crise econômica e o instituto sofreu com uma sucessão de presidências desastrosas, que culminaram na desarticulação dos arquitetos e no descaso com a conservação da sede. Não se sabe, por exemplo, quando o mosaico de vidro dos beirais foi retirado e por que não foi reposto. Salas imponentes e elegantes, que antes davam as boas-vindas aos visitantes, estão vazias e, não fosse pela livraria no térreo, o número de pessoas no prédio seria ainda menor.
Segundo a equipe responsável pelo restauro, coordenada pelo arquiteto Sílvio Oksman, a obra quer trazer de volta o valor do prédio, respeitando o tombamento pelos órgãos de patrimônio Condephaat e Conpresp, mas sem deixar de lado intervenções essenciais para adaptá-lo às necessidades contemporâneas. As instalações elétricas e hidráulicas são alguns dos pontos estudados, assim como novas escadas de incêndio. O auditório será reaberto no subsolo, o térreo continuará com a livraria, o primeiro piso voltará a ter o restaurante, e os superiores vão seguir privados. “Esse restauro é como um laboratório, pois põe em pauta decisões de como reformar obras modernas, algo que ainda foi pouco colocado em prática em São Paulo e no Brasil. As construções desse período já começam a exigir reformas devido ao desgaste do tempo, e o IAB-SP deve ganhar um status de referência nesse sentido”, aposta Sílvio Oksman. E, sobre a desarticulação da classe e a força da entidade, o arquiteto confessa: “Acho que é preciso ativar o debate sobre a importância dos arquitetos para a construção das cidades. Fomos colocados num canto, não participamos muito da discussão da arquitetura como cultura, como política”. Voltando ao restauro, apesar de a presidência previr que o início das obras na marquise escorada acontecerá em meados de setembro, também deixa claro que nenhuma parceria com empresas ainda foi concretizada. No site do IAB-SP, a campanha de crowdfunding tinha conseguido arrecadar, até o fechamento desta edição, R$ 4125. Segundo Armênio, a captação de doações pela internet serve especialmente para divulgar a intenção do restauro e busca alcançar instituições interessadas em apoiá-lo.