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Sharmi Albrechtsen: “respeito gera felicidade”

A jornalista americana Sharmi Albrechtsen aprendeu com os dinamarqueses uma lei que deveria ser universal e, acredita, está na origem da felicidade daquele país.

Por Texto: Kátia Stringueto | Design: Júlio Grobel | Ilustração: Gustavo Duarte
Atualizado em 21 dez 2016, 00h21 - Publicado em 18 nov 2013, 20h13
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Filha de indianos, nascida nos Estados Unidos e radicada na Dinamarca há 15 anos, a jornalista Sharmi Albrechtsen é uma curiosa observadora da diversidade cultural. Mas um tópico a intriga e motivou um longo período de pesquisa: por que os dinamarqueses são o povo mais feliz do mundo. Título reconfirmado no último relatório da ONU, a medida de bem-estar levou em conta fatores como família, educação, saúde, liberdade de escolha e relações com a comunidade e instituições públicas. Para Sharmi, no entanto, esse contexto poderia ser resumido num hábito: o exercício do respeito. “Na Dinamarca prevalece a lei de Jante, que diz que ninguém é melhor do que ninguém”, conta. O filho do jardineiro estuda na mesma escola que o do advogado. O lucro do ano de um lixeiro pode ser o mesmo que o de um médico, pois quanto mais se ganha mais imposto se paga. Na vida real, a princesa dá à luz no mesmo hospital público que um garçom engessa o braço fraturado. Em seu recém-lançado A Piece of Danish Happiness (Um fragmento da felicidade dinamarquesa), a jornalista escreve sobre quanto essa lei igualitária está impregnada no cotidiano do país nórdico. “Não há grandes expectativas. Como dizem os gurus indianos, o segredo é não ficar sonhando. Você pode ter uma casa confortável, um carro novo, fazer uma longa viagem. Mas as pessoas já têm o básico e, no entanto, não ficam querendo mais e mais coisas materiais. Para elas, a felicidade vem dos pequenos prazeres da vida e não do carro novo, da casa maior, da roupa de grife”, contou ela durante uma gélida manhã de inverno, em sua residência, em Copenhague. Lá, onde mora com o marido e a filha, ela recebeu BONS FLUIDOS para falar sobre essa sociedade que apesar do frio e dos impostos altíssimos, desfruta de um genuíno contentamento. Há muito para aprender com uma nação que até para falar de um produto tipo exportação é modesta. O slogan da Carlsberg, referência mundial de qualidade cervejeira, estampa: “Probably, the best beer in the world” (Provavelmente, a melhor cerveja do mundo). É sobre essa mentalidade – que se esparrama por tudo – que conversamos.

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Fiquei impressionada ao ouvir de um chef de 25 anos, casado, com um filho, que ele não tinha nenhum sonho. Já era feliz.

É assim. Tendo saúde e educação garantidos pelo governo, uma casa para morar e tempo para passar com a família, o dinamarquês não precisa de mais nada. Talvez a maior ambição seja apenas ter mais tempo para desfrutar em casa – uma das prioridades para esse povo. Gurus indianos, aliás, falam que as expectativas são fontes de ilusão. Você até pode ter uma grande casa, um carro novo, fazer uma longa viagem, ter dinheiro no banco. Mas de que adianta? Eles preferem tempo livre. E criaram até uma palavra para as situações de conforto que buscam. É hygge (se diz riuga). Hygge é algo que você faz para você mesmo, nada extravagante, estilo dinamarquês.

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Como sair do trabalho às 17 horas…

A sociedade aqui realmente não quer que você trabalhe muitas horas. Você deve ser capaz de fazer seu trabalho no tempo que tem. Se não, há algo errado. A partir das 17 horas ninguém está no escritório. A empresa, o governo, todos querem que você vá para casa, vá praticar o seu esporte, entre em contato com a natureza. Para ter uma ideia, paga-se em média 100 dólares por ano para manter o barco no porto. Um barco custa em torno de 20 mil dólares (mais ou menos o preço de um Honda Fit no Brasil). Já um carro é muito caro. Talvez você tenha um se poupar bastante. Mas não é incentivado a isso.

Você acabou de escrever um livro em que investiga a felicidade neste país. O que a levou ao tema?

A apresentadora americana Oprah Winfrey esteve aqui em 2008 para um programa e elogiou todo mundo, adorou o modo de vida de Copenhague e tal. Mas meus amigos aqui diziam que não era nada daquilo. Eu fiquei intrigada. Se você analisa anos de estatísticas constata que desde que se começou a medir o índice de felicidade, eles estão no topo da lista – e não usam Prozac (risos). Só não espere encontrar dinamarqueses distribuindo sorrisos pela rua. Eles vivem um contentamento íntimo. Depois de anos de pesquisa, vejo que as razões desse fenômeno vão além da educação gratuita. Na minha opinião, o motivo principal disso é uma sociedade justa. O fato de os habitantes não precisarem se preocupar com questões de sobrevivência não lhes dá automaticamente o título de mais felizes, mas o modo de pensar, sim. Há uma atitude comunitária para tudo. Coerência. Na verdade, chamo a isso de consequências da lei de Jante.

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Pode explicar do que se trata?

A lei de Jante ficou mais conhecida a partir de 1933 graças a uma obra escrita por Aksel Sandemose. Na cidade fictícia de Jante, imperava essa mentalidade de que ninguém é melhor do que ninguém. E essa regra vale para tudo. Exemplo: o filho do lixeiro estuda na mesma escola que o de um advogado, as crianças crescem, continuam amigas e depois, na vida adulta, se frequentam. Em alguns casos, o lixeiro até ganha o mesmo que um advogado ou médico. Não é possível dizer a partir do trabalho de uma pessoa quanto de dinheiro ela ganha e isso não importa. O governo fica com 68% de qualquer quantia e, no final das contas, lixeiro ou advogado, todos têm uma vida digna.

Essa igualdade de base é fantástica. Como foi se adaptar a ela?

Quando cheguei em Copenhague com meu estilo americano de vender minhas ideias – acho que você sabe que o americano faz o marketing de si mesmo –, eu era sempre preterida. Pensava: poxa, eu faço um excelente trabalho, preciso que saibam disso. Mas não funciona assim. Se alguém se sobressai, se alguém é mais egotrip, se só fala eu, eu, eu… não consegue emprego. Foi meu marido quem me deu um toque e disse que precisava ser mais modesta. Se até a Carlsberg, uma cervejaria daqui que é referência mundial, não diz que é a melhor! Eles dizem: “Probably, the best beer in the world” (Provavelmente, a melhor cerveja do mundo). Então, imagine!

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É uma mentalidade sensível no dia a dia?

Sim. Até numa festa de aniversário você precisa se preocupar com todo mundo que estará presente e, ao escolher o presente, pinçar algo bacana, mas que não seja sobressalente e não constranja nem o aniversariante nem os demais convidados. Sofri um pouco com isso, porque sou de um país em que se você tenta ser uma estrela, ótimo. Aqui, não. Você tem que abraçar as coisas que eles gostam. E entender que não valorizam o estranho e o diferente. Por uma razão: as pessoas se sentem iguais. Se alguém chama atenção para si, domina a conversa, não cria harmonia. E eles buscam equilíbrio.

Essa ideia pode soar como censura e repressão em outras culturas, não?

O lado bom de ser uma sociedade tão absolutamente igualitária é imenso. Ganha a cidade, ganham os cidadãos. As crianças são respeitadas. Os velhos também. Podemos aprender que simples prazeres duram mais. Jogue fora todo o materialismo e pense que até pode dispensar seu tempo trabalhando, trabalhando, trabalhando, mas o que adianta todo o dinheiro no banco? Aliás, se você quer ganhar dinheiro saia da Dinamarca. Mas se quiser liberdade e igualdade, esse é o lugar. Os dinamarqueses casam, descasam, e o sistema apoia. Não há complicações legais. E ninguém vai te julgar também se decidir ter um relacionamento homossexual. Você realmente pode fazer o que quiser da sua vida.

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Talvez a único ponto desfavorável é o alto índice de suicídio entre os povos escandinavos.

Aí que está. A média é a mesma da Europa, do Canadá, dos Estados Unidos. Alguns dizem que a causa é a falta de sol, outros que num país de gente feliz é ainda mais difícil ser infeliz. Ao se comparar com outras pessoas que não têm comida na mesa, educação para as crianças, saúde de qualidade há um tipo de pressão às avessas. Mas o fato é que os motivos do suicídio continuam um mistério em todas as partes do mundo.

Você poderia falar sobre o trabalho voluntário aqui?

Ser voluntário significa que alguém é forte e alguém é fraco. E isso não combina com uma ideia anterior. Se todos são iguais, ninguém precisará do tempo do outro. Se você vê um mendigo na rua, pode ser por opção. E não duvide que as pessoas ao redor falam com ele e o tratam como alguém competente para mudar essa situação quando desejar. No fundo, todos sabem que estão cuidando da sociedade e do próximo ao pagar, com orgulho, seus tributos. O dinheiro é bem utilizado e a população pode confiar que as instituições darão o melhor destino para ele. É só andar pela cidade e conversar com as pessoas para confirmar que dá certo.

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Livros do Deepak Chopra e do dalai-lama estão espalhados por sua mesa. Esses gurus têm algo a ver com a Dinamarca?

Os dinamarqueses não se dizem espiritualizados, mas há uma força espiritual nas ações que praticam. Exemplo: tiram a roupa e vão para o oceano tomar banho de agua fria. Qual é a relação? A agua fria é tão energizante que liga corpo e alma segundo o próprio Chopra. Outro link são as longas caminhadas pela floresta que permitem uma conexão íntima com a natureza. Ou seja, os dinamarqueses não perceberam, mas são muito espiritualizados (risos).

Eles só não vão às igrejas…

Em Copenhague, no início do ano, metade delas fechou. Você não tem que agradecer a Deus. A vida em harmonia e equilíbrio que eles levam é uma realidade criada por pessoas, toda sociedade trabalha para isso. Não é uma bênção que caiu do céu. O que não significa que não seja uma nação grata. Todos encontram beleza no que eles têm. E por isso eu acho que a felicidade mora aqui. Não é um paraíso natural como o Brasil, mas cada expressão da natureza é valorizada. Lembro de meu marido me chamar a atenção para as primeiras flores da primavera, que são pequeninas e lindas, numa época em que eu só queria saber de rosas.

Me chamou a atenção que em dinamarquês há muitas palavras para dizer obrigado e nenhuma que signifique por favor…

As pessoas são diretas. Faça isso, pegue aquilo etc. Na minha opinião, o motivo de não haver um equivalente a por favor é que todos se respeitam mutuamente. Com isso, é como se a polidez não fizesse falta.

Quão dinamarquesa você se sente hoje?

Tem gente que diz que eu entendo a cultura deles mais do que eles mesmos. Ninguém na Universidade de Copenhague, por exemplo, estuda esse tema. Amo a forma como tratam a natureza e o minimalismo. Estava num voo outro dia e o americano ao meu lado lia Como Se Tornar um Milionário em Três Semanas. Pensei: o dinamarquês quer ser feliz em três semanas. Já me identifico mais com essa segunda opção.

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