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O que aprendi com meu pai

Repórter conta os ensinamentos que seu pai lhe deixou ao longa da vida

Por Texto: Raphaela de Campos Mello | Ilustrações: Nik Neves
Atualizado em 20 dez 2016, 22h38 - Publicado em 20 ago 2014, 19h36
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Dele vem o empurrão derradeiro que nos lança sobre as próprias pernas, a bronca na hora certa, o conselho embalado com sabedoria, a sensação de que o mal passará longe enquanto ele olhar por nós.

Seja o pai que nos concebeu, o cuidador que nos acolheu, seja mesmo o mestre que nos orienta e protege na terra ou das alturas, a figura paterna é sempre a fronteira entre o eu e o mundo. Entre o que somos e o que podemos vir a ser. Vasculhe a memória e certamente vai encontrar algo que sem sombra de dúvida fez diferença ter aprendido com esse primeiro professor. Algo que você copia sem sequer ter muita consciência, alguma frase, comportamento, algo sério ou bem-humorado. Um conselho ou um olhar firme nunca mais visto em alguém – e para sempre lembrado.

Para a psicanálise, esse personagem é a terceira ponta de um triângulo. A parte que se impõe para que mãe e filho não se percam na fusão. Daí a tarefa de cortar o cordão umbilical, literalmente, na hora do parto. “No inconsciente, a figura do pai marca a existência do ‘outro’, de um ser que não se encontra na relação de simbiose entre o bebê/criança e a mãe”, ensina o filósofo e psicanalista Arthur Meucci, de São Paulo. Ele explica que enquanto a mãe está mais inclinada a suprir os desejos do filho, muitas vezes descartando o contexto social, o pai, por simbolizar a lei, as regras e as punições, enfatiza a existência de interesses e limites externos àquele pequeno ser. Não é à toa que muitos, até hoje, são vistos como severos. “Por outro lado, quem desempenha esse papel também simboliza o cuidado e a proteção”, acrescenta Meucci. Até porque, ele lembra, as regras servem para nos proteger. Portanto, são formas ativas de demonstrar amor.

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Os efeitos disso não poderiam ser mais frutíferos. “Quando as relações com a figura paterna são boas, geralmente os filhos respeitam as outras pessoas e confiam nos benefícios das leis e dos costumes sociais”, aponta o psicanalista. A autonomia é outra semente intencionalmente plantada. “O pai suficientemente bom não só ajuda o filho a interagir com o mundo como também estimula a independência emocional e material dele”, sublinha o estudioso.

No panteão mitológico, esse arquétipo se encaixa na personalidade de Odin, principal deus da mitologia nórdica. Representação da sabedoria e da guerra, ele é rigoroso, porém amável. Rígido, mas justo e benevolente. Sábio e, ao mesmo tempo, humilde para reconhecer seus pontos fracos. Por ser tão humano e sensível, cultua a virtude e a poesia. Embora afeito ao combate, só entra em briga quando estritamente necessário.

Sem ter plena consciência, buscamos Odin em muitos lugares. No pai dado pela vida, no pai do céu, no guru, no pensador cujas ideias iluminam nosso caminho, no líder político que esbanja carisma e promessas de um futuro bom. Cada um, a seu modo, é guarida, bússola, referência de conduta.

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Muitos jeitos de ser pai

Nos dias de hoje, podemos ir além e dizer que a presença do pai se aprimorou de diferentes maneiras dentro do lar. Mais participativa, prendada e afetuosa como nunca antes na história, a nova geração está ensinando a suas crias um modo mais humano e inteiro de ser homem. Segundo a terapeuta de casais e de famílias Lidia Aratangy, de São Paulo, cabe às mulheres encorajar a ala masculina a ocupar o espaço que lhe pertence por direito. “Existe um jeito masculino de trocar fralda, de dar mamadeira e papinha que é diferente do feminino, mas certamente tão bom quanto”, equaliza. A proximidade e a partilha são as grandes conquistas desse modelo, além da reformulação da identidade do macho, bem como das dinâmicas doméstica e familiar.

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O escritor João Anzanello Carrascoza, natural de Cravinhos, interior paulista, que lançou recentemente o romance Caderno de um Ausente (ed. Cosac Naify), desabafo de um pai tardio para sua descendente recém-nascida, desfolha mais uma camada dessa relação. Para ele, é essencial ensinar a um filho que o mais importante não é estar junto, mas estar dentro, como um farol sempre aceso. “Ser pai é legar a alguém – estando ou não presente muito tempo com ele para a partilha dessa aventura – a mesma existência de dores e alegrias, o mesmo desafio de viver com humildade o presente, as mesmas limitações e a certeza brutal da finitude”, poetiza. De outro lado, o do aprendiz, Carrascoza também acredita que uma obra literária ou mesmo um autor podem desempenhar essa função na medida em que contribuem com seu conhecimento e sua sensibilidade para a educação intelectual e sentimental de quem o lê. “Um escritor funda ‘novos mundos’, com os quais o leitor pode ampliar a sua experiência estética e viver mais profundamente a sua condição humana”, diz ele, que elegeu o paulista Raduan Nassar, autor de Lavoura Arcaica e Um Copo de Cólera (ambos da ed. Companhia das Letras), seu “pai literário”.

Olhai por nós

Há quem mantenha com o mestre espiritual uma genuína relação de filho para pai. Axel Guedes, revisor de textos e administrador do site Mundo Escrito, de Goiânia, é devoto do iogue e guru indiano Paramahansa Yogananda (1893-1952), fundador da Self-Realization Fellowship, entidade internacional difusora da kriya ioga. Filho de um seguidor do guru, ele cresceu entre meditações, cânticos e ensinamentos. Foram muitos os aprendizados absorvidos. Mas um o acompanha com maior contundência. “Normalmente, vivemos reagindo às circunstâncias da vida, sem ter suficiente consciência disso. Quando passamos a praticar diariamente as técnicas de meditação ensinadas por Yogananda, as atividades cotidianas ganham uma nova perspectiva. Naturalmente nos encaminhamos para uma maturidade emocional”, afirma. De mãos dadas com seu mestre, o discípulo tem todas as condições de acessar as profundezas da própria consciência, seu grande trunfo nesta vida. “Então, aprendemos a nos libertar dos maus hábitos que antes nos manipulavam sem que sequer percebêssemos, tais como os sentimentos negativos e as atitudes provenientes de impulsos irrefletidos”, complementa Guedes.

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Mesmo fervor emana a católica Sonja Freitas Santos, funcionária pública, de São Paulo. Para ela, o Pai do céu é uma força muito próxima do seu íntimo. “Sinto-me em relação a Ele como filha amada, amparada. E nos momentos de dor tenho a sensação de que me aninho em seu colo. Com Ele desabafo, choro e espero sempre o melhor”, revela. Sua fé se abastece da convicção nesse amor inesgotável. Seu Deus é  bondoso e provedor, garante.

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Patrimônio inestimável

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A sensação de ser salvo pelas mãos paternas não vem só dos domínios espirituais, obviamente. No decorrer do convívio familiar vamos coletando pérolas deixadas pelo caminho já percorrido por nosso cuidador. São as lições apresentadas pela conduta e reforçadas pelo discurso. Uma herança de valor afetivo inabalável que baliza nossos passos e não se apaga com o tempo. Ao contrário, fica mais forte, como bem confessou o escritor Rubem Braga no conto Coisas Antigas: “Há um certo conforto íntimo em seguir um hábito paterno; uma certa segurança e uma certa doçura”.

Uma sensação confortável tão simples como, escreveu o autor, ir à mesma loja de guarda-chuvas que o pai frequentava. Uma vez colhidas e assimiladas, essas joias se incrustam no no nosso ser. E lá germinam. Até o momento de serem transplantadas nas gerações vindouras.

O escritor João Carrascoza aprendeu com o pai, um comerciante de cereais e exímio contador de histórias, o respeito incondicional e o exercício diário da compaixão. A católica Sonja Santos teve um pai simples, honesto, trabalhador do ramo contábil, que deixou como lição a retidão dos atos e a gratidão por tudo o que a vida traz. “Ele retribuía com amor e jamais se esquecia de alguém que fazia algo por ele”, conta.

Já a terapeuta Lidia Aratangy destaca o aprendizado do respeito transmitido pelo pai, cirurgião. “Ele me ensinou que é possível ter autoridade com afeto e sem violência. Eu e meus três irmãos nunca levamos um tapa. Tenho quatro filhos e nove netos e ninguém nunca apanhou. É como se essa autoridade sem violência pudesse, de fato, ser transmitida”, atesta. Esse mesmo pai fez questão de nortear a escolha profissional da sua menina numa época em que o mercado de trabalho ainda era dominado pelos homens. E, com contundência, dizia: “Não me invente de fazer faculdade ‘tico-tico’. Não basta ter um diploma, uma mulher precisa ter uma profissão. Pois o único homem que pode te sustentar sou eu – e não para sempre!”, ela recorda, enfatizando a importância do olhar paterno para a construção da autoestima feminina. Lidia lembra ainda dele saber fazer isso por meio do reconhecimento, do orgulho assumido. “Minha filha, onde foi que acertei com você?”, indagou em tom jocoso, certa vez, o pai da terapeuta depois de ter assistido a uma palestra dela.

Na história da artista plástica Isabelle Tuchband, de Taubaté, interior paulista, a herança paterna se ramificou em três belos troncos. No pintor francês Emile Tuchband (1933-2006), ela encontrou um pai, um amigo e um mestre da arte que ela abraçaria. “Esse homem doce e educado sempre falava que a amizade era fundamental na vida de todos”, diz a filha de peixe. Dele também veio o conselho: “Faça tudo com alegria e com amor, do contrário nada tem sentido”. Recentemente, Isabelle criou uma vitrine na cidade francesa de Nice e a dedicou ao seu eterno querido. “Escrevi no vidro: ‘A mon père, Emile, meu mestre.” Quanta gratidão embutida aí.

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