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Famílias enfrentam preconceitos para adotar

A adoção no Brasil está se transformando no rastro das mudanças vividas nos últimos anos pela família brasileira, cada vez mais disposta a amar ao largo dos rótulos.

Por Raphaela de Campos Mello | Produção Visual (SP) Paulo Lagreca | Design Jackeline Dinizo | Fotos Victor Affaro
Atualizado em 20 dez 2016, 20h10 - Publicado em 7 jun 2013, 20h31

A fila da adoção no Brasil é longa e ávida. Aproximadamente 30 mil pessoas, segundo o Conselho Nacionalde Justiça, órgão responsável pelo Cadastro Nacional da Adoção (CNA), anseiam pelo dia em que pegarão os filhos nos braços e, juntos,construirão um lar, uma família. No entanto, na maioria dos casos, o filho desejado cabe num molde estreito.Não é qualquer criança. As mais crescidas, grupos de irmãos, negros e, sobretudo, aquelas acometidas de doença grave ou portadorade deficiência física e mental ainda são invisíveis aos olhos da maioria dos requisitantes, que preferem adotar recém-nascidos, brancos, de preferência, do sexo feminino e saudáveis. Mas esse cenário está mudando. Contra todas as “inconveniências” de uma adoção necessária (designação que remonta às necessidades mais prementes dos abrigos), seja o preconceito, seja o trabalho exigido pelos cuidados médicos e psicológicos, há muitos pais e mães dispostos a olhar para o final da fila (atualmente, com 5 500 integrantes), onde esperam encontrar o filho amado, do jeito que veio ao mundo. Se o perfil da adoção no Brasil está mudando, isso se deve, em grande medida, ao trabalho de esclarecimento fomentado pelos cerca de 125 grupos de apoio à adoção espalhados pelo país. Palestras, rodas de conversa e consultas particulares promovem o intercâmbio entre psicólogos, médicos, advogados, assistentes sociais, pais que vivenciaram o processo da adoção e candidatos a viver essa experiência. A troca de relatos reais, segundo Bárbara Toledo, presidente da Associação Nacionaldos Grupos de Apoio à Adoção (Angaad), com sede em Niterói, RJ, tem sido fundamental para demolir tabus, afastar o medo e, assim, transformar as mentalidades. “Muitos pais e mães chegam com um perfil fechado e, com o avançar dos encontros, flexibilizam essa ideia. Entendem que o mais importante é o afeto, o cuidado e a perpetuação de valores, não de traços biológicos”, diz ela.

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Esse estímulo partiu da chamada Nova Lei da Adoção, de 2009, que obriga os pretendentes a receber orientação dos grupos de apoio antes de serem habilitados (veja mais detalhes no boxe no final da matéria). Segundo Bárbara, a maturação, que envolve conhecer as dores e as delícias do processo e da rotina pós-adoção, é fundamental para que a decisão seja certeira e, no futuro, os responsáveis estejam mais bem preparados para lidar com questões cotidianas – como o rótulo adotivo, ainda colado a eles e a seus filhos, a fase de adaptação, a curiosidade da criança ou do jovem em conhecer sua história, o fantasma da rejeição.

RAZÃO DE SER

A compreensão primordial transmitida nesses encontros é a de que obem-estar da criança está em primeiro lugar, diferentemente do que acontecia no passado. “A razão deser da adoção, hoje, é atender ao melhor interesse da criança, e não mais dar filhos a quem não os pode ter ou a quem não deseja envelhecer sozinho”,enfatiza a advogada Silvana do Monte Moreira, presidente da Comissão Nacional de Adoção do Instituto Brasileiro de Direito da Família (Ibdfam), com sede em Belo Horizonte. Mas se por um lado as autoridades tentam aprimorar o percurso, impondo o comparecimento aos grupos de apoio, por outro deixam a desejar. A morosidade da Justiça é aprincipal queixa dos entrevistados. “Teríamos de ter maior celeridade no processo de destituição do poder familiar, que ainda é muito demorado. Por outro lado, a Justiça precisa ser criteriosa, pois não pode permitir, por exemplo, que a criança saia de uma família abusadora e caia em outra com o mesmo perfil”, opina Silvana. Antonio Carlos Malheiros,coordenador de Infância e Juventude do Tribunal de Justiça (TJ) de São Paulo, reconhece a falha do poder judiciário. “Os juízes estão sobrecarregados, porque acumulam funções. Também faltam psicólogos, assistentes sociais e escreventes. É um absurdo, pois as crianças e os jovens são prioridade”, desabafa. Mas apresenta a contrapartida: “De toda forma,o processo de destituição do poder familiar não pode ser rápido. Precisamos verificar se a família biológica tem como se recuperar, oferecendo, assim, segurança ao filho temporariamente abrigado. Isso pode levar até dois anos, segundo a lei”, argumenta. Bárbara rebate: “A família biológica envolvida em maustratos, negligência e violência não pode empatar o futuro da criança, que acaba ficando à mercê de uma reformulação que, na maioria das vezes, não acontece”.

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Apesar da lentidão burocrática, o fato é que a fila andaria mais rápido se os pais abrissem o coração para a diversidade. Entretanto, na visão de Silvana, nem todos têm condições de amar incondicionalmente. Isso precisa ser admitido. “É importante incentivarmos as adoções necessárias. Contudo, recomendo aos pais respeitarem seus limites emocionais do que correrem o risco de posteriormente rejeitarem a criança”, propõe a advogada. De acordo com a psicóloga Marlizete Maldonado Vargas, coordenadora do Laboratório de Planejamento e Promoção de Saúde, da Universidade Tiradentes, em Sergipe, e autora do livro Adoção Tardia – Da Família Sonhada à Família Possível (Casa do Psicólogo), os pais precisam avaliar se estão aptos a desempenhar esse papel. “A pessoa tem que ter disposição para amar incondicionalmente, sabendo que as crianças testarão o vínculo, como se, com isso, perguntassem: ‘Até que ponto você me quer?’, o que pode se tornar insuportável”, alerta. Alguns comportamentos são esperados, tais como a agressividade em crianças maiores como forma de desafiar os pais ou como reflexo do abandono pregresso, bem como a regressão a fases anteriores do desenvolvimento, manifesta pela vontade de tomar mamadeira ou ganhar colo. “É importante que a criança seja atendida nessa necessidade”, afirma Marlizete. No caso das adoções envolvendo problemas graves de saúde, a psicóloga aconselha aos pais contarem com o suporte da família estendida (primos, tios, avós) e dos amigos. “Eles não precisam arcar com tudo sozinhos só porque a adoção partiu deles”, avaliza.

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PROVAS DE AMOR

Esse tipo de conselho mostra que aadoção é, antes de tudo, um gesto humano, e não ato de super-heróis dispostos a salvar o mundo e a semeara caridade. O que se deseja é viver a maternidade e a paternidade, missão que implica enfrentar as possíveis agruras de uma relação parental, o que exige amor, tolerânciae disponibilidade. Alguns pais entrevistados admitem que, se os filhos fossem um pouco mais velhos ou tivessem problemas mais sérios, talvez não os tivessem adotados. Não aguentariam a barra. Mas o fato é que adotaram seus rebentose encontraram força, luz, compreensão e amor de sobra, dosdois lados. Tanto Carlos Renato Barbosa quanto Ana Maria Monteiro, Gleike Bergmann e Eliane Carrão nem esperam a pergunta. Vão logo esclarecendo: “Não sou herói, alma elevada ou coisa do tipo. Quis ter um filho. Só isso”. Depois, compartilham suas histórias com evidente “corujice”. O carioca Carlos Renato sempre quis ser pai, tendo em vista a longa convivência com crianças e jovens em projetos sociais. Chegou aos 40 e poucos anos solteiro, mas ainda assim, preparado para vestir esse novo papel. Partiu para a habilitação em2011. Nesse meio-tempo, a juíza à frente do caso comentou sobre Christofer, garoto de 12 anos exímio desenhista. Carlos virou seu padrinho. Passaram a conviver a cada 15dias. Gostaram um do outro. “Decidi entrar com o pedido de adoção. Estamos nos dando bem. Ele é um grande companheiro, muito carinhoso. Tem sequelas da rejeição e sente saudade dos irmãos. Mas está indo bem na escola e na vida doméstica”, conta o pai, orgulhoso da cria. “Eu precisava dele tanto quanto ele de mim”, arremata. Já a paulista Gleike Bergmann conheceu Ângela ainda bebê, há 12anos. Mãe de Anelise, então com 8anos, tinha o desejo, àquela altura incipiente, de adotar uma criança. Foi quando chegou aos seus ouvidosa história de uma recém-nascida abandonada no hospital. “Ela tinha disfunção na glândula suprarrenal e um distúrbio genital. Institucionalizada, não sobreviveria, segundo a médica”, lembra.

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Qualquer possibilidade de recusa se dissipou no instante em que Gleike apegou no colo. “Senti que era minha filha.” Essa certeza a impulsionou por todos os trâmites legais. Uma vez na fila, em terceiro lugar, testemunhou a desistência dos dois casais à sua frente. Ângela, até então “RN de Solange”, era, oficialmente, sua. Bateladas de consultas, exames e cirurgias pontuaram o caminho da garota, que, todo o tempo, teve ao lado “uma mãe lutando pela vida da sua filha, um dia após o outro”, nas palavras de Gleike.

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Depois de esgotar as tentativas de gravidez por meio de fertilização e inseminação artificial, a carioca Eliane Carrão se abriu para a adoção. Em dose dupla. Ela é mãe deLeonardo, 7 anos, portador deTranstorno Global do Desenvolvimento– TGD (leve atraso cognitivoe motor), e de sua irmã biológica Sabrina, 6 anos, acometida de focomelia (ausência de antebraço) e escolioseidiopática (sério desvio na coluna). Ambos chegaram a sua vida com 2 anos e meio e 1 ano, respectivamente. Desde então, a casa da família voltou a sorrir. “Estava me habilitando para uma adoção bem aberta, frequentando grupos de apoio. Foi aí que minha advogada falou sobre eles. Fui visitá-los no abrigo, com autorização da juíza, e fiquei encantada”,conta. Como na história de Gleike, duas desistências fizeram com que os irmãos ganhassem Eliane e seu marido como pais. Juntos, eles têm superado as limitações neurológicas de Leo e a condição física de Sabrina. “Tem horas que aperta. Não sei como lidar. Mas fizemos terapia familiar por muito tempo e também tem o apoio da família e dos amigos.

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Descobri que filhos e pais aprendem a se amar. O amor é uma construção.” O mesmo pode dizer Ana Maria Monteiro, mãe de Ana Paula, 4 anos, portadora de síndrome de Down. “Ela é o xodó da família”, revela. Ana Maria assumiu oficialmente Ana Paula depois de a mãe dela ter reconhecido a impossibilidade emocional e financeira de criar a garota – outro gesto de amor. Desde os 5 meses, a garotinha frequenta, uma vez por semana,a Apae de São Paulo, onde recebe, gratuitamente, orientação e tratamento com terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas, fonoaudiólogos e médicos. “Não sabia o que era criar uma criança com síndrome de Down. Hoje, não é mais um bicho de sete cabeças”, atesta. A dra. Fabíola Monteiro, médica geneticista da Apae de São Paulo, assina embaixo: “Com estimulação adequada, eles se desenvolvem bem e viram adultos produtivos, apesar de necessitar em de acompanhamento”, diz. Em comum, todos os pais ouvidos nesta reportagem são outros depois da adoção. Donos de novos valores e visão de mundo. Sentem-se agraciados pelo exercício cotidiano do amor, que chega para alargar o coração, surpreso por comportar tanto bem querer. Justamente do que o nosso país, berço de mazelas mil e de crianças e jovens plenos de potencial, mais precisa.

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