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Entre filos de luz, histórias de artesão de Jalapão

Os jornalistas Silvia e Heitor Reali viajam ao Jalapão em busca do verdadeiro tesouro da região: as artesãs do capim dourado.

Por Texto: Heitor Reali | Fotos: Silvia Reali | Ilustrações: Vanessa Kinoshita
Atualizado em 20 dez 2016, 19h48 - Publicado em 30 abr 2014, 17h55
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Difícil imaginar no Brasil um lugar tão inóspito quanto o Jalapão, no centro-leste do Tocantins. E só estando lá para ver que naquelas bandas se produz um artesanato tão exuberante – o feito com capim dourado. Com um pouco mais de atenção, no entanto, percebe-se a verdadeira joia do lugar: as pessoas que fazem desse artesanato o ganha-pão. Mulheres de garra, esperança, ao mesmo tempo sensíveis e corajosas no embate pela vida.

São quase 6 horas da manhã, e já estamos entrando no território do Jalapão pela cidade de Novo Acordo. Distante 110 quilômetros de Palmas, é a fronteira traçada entre as terras verdes e as áridas.

Nosso destino é Mumbuca, um povoado rural a 230 quilômetros de Novo Acordo, quase limite com a Bahia. É lá que se concentram as mãos mágicas de mais de duas dezenas de tecedoras do capim dourado. A estrada, embora de terra, não é ruim, mas não tem sinalização alguma. Quem errar o caminho pode começar tudo de novo. Por isso uma viagem por essa região requer o acompanhamento de um bom guia. No nosso caso, o turismólogo Flávio Silveira Ribeiro. Sob a forte luminosidade tropical, vamos avançando pedra por pedra, comendo poeira, e passando por paisagens surrealistas, com dunas do tamanho de montanhas, sem exagero, e por conjuntos de rochedos que lembram cidades petrificadas. Sempre sob um sol escaldante, mas com um pot-pourri de fragrâncias trazidas por ventos imprevisíveis – e abençoados. Viajantes desse deserto peculiar, também topamos com oásis: as veredas, um ecossistema que aglomera palmeirais de buritis, sempre regadas por filetes de água que acabam por formar um lago no qual boiada e vaqueiros matam a sede. É exatamente nos solos úmidos das veredas que nasce o capim dourado, uma espécie de sempre-viva (Syngonanthus nitens). Vegetação delicada, com hora certa para se colher.

Legado de dona Miúda

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Mumbuca é um povoado minúsculo. Sua origem se deve a escravos fugidios da Bahia, e seu nome faz alusão a uma abelha que vive enfurnada na terra. Sem atrativo turístico nem infraestrutura e com pouco mais de 50 famílias, esse lugarejo tinha tudo para ficar esquecido no sertão de Tocantins. Nosso olhar curioso flagra pelas janelas das casas de adobe um ambiente desprovido de quase tudo. Por vezes, não há nada além de uma rede. Só que as mulheres desse lugar remoto sabem costurar com o capim dourado. Fazem mandalas, jarros, potes, cestas, pratos, sousplats, fruteiras, chapéus, bolsas, caixas, brincos, pulseiras e colares.

Se há um nome feminino para definir o sucesso do capim dourado para além dali é o de Guilhermina Ribeiro Silva, mais conhecida como dona Miúda, falecida há pouco tempo. Todas as artesãs aprenderam com ela. Seu legado de atar fios da natureza, dando forma a um dos mais requintados artesanatos do Brasil, está ajudando a inserir Mumbuca no mapa-múndi. E por que não? A história das mulheres do capim dourado, no Jalapão, hoje integradas em quatro associações, com aproximadamente uma centena delas, entre artesãs e aprendizes, pode ser contada pela trajetória dessa senhora. Começa em um tempo quando todos naquele quilombo eram rongós (muito pobres) e não tinham dinheiro para nada. Viviam da roça. “Dinheiro pra quê, se não tinha nada pra comprar”, dizia dona Miúda.

O início de tudo se dá no final da década de 1930, quando ela, então com 14 anos, viu sua mãe, uma índia xerente, colher algumas hastes finas e longas de um certo capim para tecer um chapéu que faiscava ao sol e nunca perdia o brilho. A partir desse momento, junto com a mãe, passou a confeccionar peças com a fibra, costurando-a com o fio retirado da palma dos buritis. Em nossa primeira vez em Mumbuca, ela disse: “Fui ensinando todas as meninas daqui, conforme aprendi com minha mãe. Já a formatura dela foi Deus quem deu. Ganhei faixa de reconhecimento pelo trabalho, mas nunca tive condições de comprar um sofazinho sequer”.

As Artesãs

A beleza de um lugar não se limita às suas paisagens, obviamente;envolve também a natureza dos seus  habitantes. E olhar para as tecedoras do capim dourado também é uma forma de se encantar com Mumbuca. Não há desânimo e muito menos lamentação; a autoestima foi bordada com o orgulho pelo trabalho desenvolvido. Elas transmitem alegria. São expansivas, marotas. Cada figura! Sem conhecer esse povoado e seus habitantes é impossível ter acesso às maravilhas do Jalapão e de seus caminhos invisíveis.

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Um pouco das experiências de vida dessas mulheres vai-se fiando a cada parada para ouvir histórias. Nessa nova viagem, alguns avanços foram sentidos. Evaniu, filha de dona Miúda, simplifica o processo de conquistas do povoado: “Hoje, moço, não somos mais perrengues, agora tá bão. Não conquistamos só coisas materiais, mas conhecimento também, a nossa clareza”. Percebe-se que essa sabedoria vem e volta para as paisagens pelas quais são responsáveis. A luta dessas mulheres agora é pelo manejo comunitário sustentável do capim dourado e pela melhoria das condições de vida. Diferentemente da década de 1980, quando elas encaravam uma luta diária para a sobrevivência e o trabalho era apenas para matar a fome. Hoje, se as condições de vida ainda não são as ideais, a perspectiva de um futuro melhor é totalmente possível. Toda a fonte de renda do povoado está entrelaçada no capim dourado. Para isso, elas se organizaram fundando a Associação Capim Dourado do Povoado de Mumbuca. Seu objetivo é integrara produção e difundir o conhecimento. “Agora, temos um lugar para expor e vender nosso artesanato. As peças estão catalogadas por artesã, e isso nos ajuda muito”, explica sorrindo a “reguelecha” (brincalhona) Ana Claudia. No interior do galpão, há poucas peças nas prateleiras. “São poucos os compradores, em geral turistas, mas quando vêm levam quase tudo”, ela contabiliza.

O tempo e a habilidade para fazer uma peça têm seu preço; resta elaborar variações. A criatividade e a competência técnica precisam apenas encontrar novos e bons aliados. Com práticas empresariais repassadas pelo Sebrae combinadas com o saber local, elas geram uma nova economia no Jalapão. “Essa hastezinha permite fazer quase tudo o que se imagina”, reforça Ilana, neta de dona Miúda. “Meu desejo é casar com uma coroinha de capim dourado”, acrescenta. Ilana é também a artesã encarregada de divulgar os produtos da associação pelo Brasil.

Identidade

Antes de o sol começar a esquentar e tendo como fundo o vermelhão do Morro do Gorgulho, Silvia e eu caminhávamos pela mesma vereda onde, quase um século antes, a índia Laurinha, mãe de Miúda, colheu e costurou o capim dourado. Era final de setembro, única época para sua colheita. Por isso a produção é restrita e as peças são tão valorizadas. É rara a oportunidade de contato com essa verdadeira arte produzida em um dos rincões mais perdidos de nosso país. Ali, a tradição comanda: “Quando chuvisca na vereda, pode ir no dia seguinte que o capim brotou”, ensina Martina. Ela, Ana Claudia, Taine, Ilana, Marijane, Jivoene, Evaniu e Elizabete vão nos ensinando os rituais da colheita. Entre eles, usar um pano na cabeça, vestir saia, colher em grupo para afastar a sucuri e, sobretudo, bater o capim para espalhar as sementes maduras – o que faz dessas mulheres guardiãs da natureza. Ah, e não esquecer de secar o capim por 30 dias, senão ele escurece.

Para completar tamanho encantamento, elas cantam sempre. Suas melodias ecoam e se misturam aos gritos das araras na imensidão do cerrado. Para nós, paulistas, foi como ouvir um mantra: “Nosso Jalapão tem algo que eu não posso deixar de falar / É do lindo capim dourado que devemos preservar / Colhendo na época certa e deixando a semente no seu lugar / Para que o lindo capim dourado continue a brilhar”.

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A colheita termina e vamos embora. Mas o encanto permanece. Ana Claudia me pega pelo braço e sorridente, como quem sabe bem o valor do que está prestes a dizer, conclui: “Antes, não considerávamos nosso trabalho como profissão, hoje somos tecedoras do capim dourado assumidas. Construímos nossa identidade”.

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