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Crônica: morar em condomínio é exercer a arte da paciência com desconhecidos

Morar em condomínio é exercer a arte da paciência porta a porta com desconhecidos

Por Por Cristina Dantas | Ilustração Maria Eugenia
Atualizado em 20 dez 2016, 19h06 - Publicado em 9 abr 2015, 19h59
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Acordei em êxtase. Às 8 horas, um coro de britadeiras já brandia sua música estridente bem próximo à janela. Particularmente, prefiro despertar ao som de Miles Davis ou, melhor ainda, ao som do silêncio – a mais suave melodia capaz de chegar a nossos ouvidos. Mas o barulho que esgrime meus tímpanos tem signifcado especial. O morador do apartamento de baixo, quetrabalha à noite e dorme durante o dia, exige que nada perturbe seu sono, seja às 8 da manhã, seja às 6 da tarde, de segunda-feira a domingo. Deixa bilhetes para mim porque minhas cachorras, às vezes, latem. Você conhece a história, querido diário, ninguém além dele nunca se queixou, e as duas estão sendo até medicadas com calmantes, devidamente receitado spelo veterinário, para que o vizinho tenha suas merecidas 15 horas de sono. Ou serão mais? Por isso, agora me pergunto se ele tentará impedir o trabalho das britadeiras ou colocará missivas pouco educadas no tapume da obra. Será que vai, enfim,entender que barulhos são uma contingência das metrópoles? Há dez meses vivendo no Copan, ícone erguido por Oscar Niemeyer nos anos 50 no centro de São Paulo, eu ainda estava em lua de mel com o edifício quando constatei como é complicada a convivência entre seres da mesma espécie, e, se forem da espécie humana, tudo atinge proporções assustadoras.A solidariedade existe entre boa parte dos moradores, porém o diálogo se torna impossível com os que apresentam um nível de irritação bem acima daquele permitido pelo estressômetro, caso houvesse tal medidor. Viver em condomínio é exercer o controle do medo e a arte da paciência. Somos colocados porta a porta  com desconhecidos, cara a cara com gente que não sabemos de onde vem, nem qual seu nível de tolerância a sons, cheiros, miados, latidos, opção sexual, cor do cabelo ou formato das sobrancelhas. Alguns estão sempre dispostos a um sorriso, enquanto outros ignoram limites. Acreditam que o mundo deva seguir constituição própria, escrita por eles e para eles. São pessoas que reúnem em si os poderes Judiciário, Legislativo e Executivo, exigindo silêncio quando lhes convém e gritando sempre que lhes interessa. Da janela vejo os fundos de uma série de prédios da Avenida São Luís. Um deles leva a assinatura indefectível do mestre Artacho Jurado. Há quem veja neles uma muralha hostil e depressiva. Eu não. Penso que desenham a marca de uma cidade, com tudo o que isso implica, até britadeiras numa manhã de sábado. Pela minha constituição, querido diário, vale o que for bom para todos.

* Cristina Dantas é jornalista. Está preparando, com o designer de interiores Roberto Negrete, um livro sobre a história do design de interiores no Brasil a ser editado pela Associação Brasileira de Designers de Interiores (ABD) e pela Editora C4.

 

 

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