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Crônica: a poesia de uma lampada queimada

A grande sacada é se empolgar com isso. Pequenos transtornos nos lembram de que a casa está viva

Por Por Gabriel Valdivieso* Ilustração Maria Eugenia
Atualizado em 20 dez 2016, 15h18 - Publicado em 4 set 2014, 21h29
cronica

Um amigo arquiteto me ensinou: a obra é um organismo vivo. Talvez pelo fato de ser administrada por simples mortais, desses como você e eu, que mudam de ideia a toda hora e decidem aumentar o tamanho da janela ou a quantidade de bocas do fogão. Agindo assim, previsões e cronogramas se tornam quase intangíveis e, muitas vezes, meramente acessórios.

Costumo ir a lém e comparar a casa ao corpo – uma porta é, naturalmente, uma boca. Acompanhada de janelas, não dá para negar que ela tem olhos. Todos os tijolos são suas células. A água correndo em canos equivale ao sangue nas veias.

Devaneios à parte, acho realmente interessante manter essa abordagem compreensiva perante a vida. Pode ser um viés embebido de cultura brasileira, o tal “jeitinho”, que, por sua vez, resvala na tendência de ver beleza no imperfeito. Ouso afirmar que não há outra saída. Somos mutantes. Nascemos, crescemos e morremos bem como projetamos, executamos e ocupamos. Enquanto houver vida, haverá evolução.

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Alguns clientes meus, a o término da obra, reclamam, sem fôlego, da falta de dinheiro para comprar aquela luminária especial destinada à sala de jantar ou alguma obra de arte que traga irreverência frente à sisuda parede de concreto. Um pouco calejado, dou um tapinha no ombro deles, pois o processo de construção e decoração não tem começo, meio e fim. Somente meio! Quando se pensa estar livre dos dramas da hidráulica, uma pia entupirá, e um encanador vai lambuzar o banheiro. No momento em que a coleção de utensílios necessários para o bem viver contemporâneo parece ter se completado, adquirir uma lava-louça se tornará algo imprescindível, demandando uma baita intervenção no layout da cozinha – e da rotina –, e assim por diante.

Melhor, então, abraçarmos a causa, vermos graça em todos os processos, em cada pequena vitória, e enxergarmos beleza na novidade. O barato é vibrar com uma lâmpada queimada: ela nos prova que a casa pulsa e está tão viva como nós.

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