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A importância de cultivar a compaixão

Esse sentimento baseado na compreensão e no amor ao próximo permite sair da inércia e fazer algo contra a dor alheia. 

Por Texto Keila Bis | Design Roberta Jordá
Atualizado em 20 dez 2016, 15h14 - Publicado em 25 jul 2013, 19h48
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“Era uma sexta-feira, fim de tarde. Na época, eu trabalhava no jornal The New York Times. Estava descendo as escadas do metrô, assim como centenas de cidadãos que iam para casa, quando notei um homem caído, imóvel. As pessoas, de tão apressadas, apenas pulavam por cima dele. Quando me aproximei, parei para ver o que tinha acontecido. No mesmo instante, meia dúzia de outras pessoas também parou em torno dele. Descobrimos que era um hispânico, não falava inglês, não tinha dinheiro, estava faminto e desmaiou de fome. Imediatamente, alguém trouxe um copo de suco de laranja, um outro lhe deu um cachorro-quente e ele se levantou. Tudo o que precisava era de um simples ato: o de ser percebido.”

O relato pertence ao psicólogo americano Daniel Goleman, autor do livro Inteligência Emocional (Editora Objetiva), e é um bom exemplo do que é a compaixão. Palavra originária do latim e do grego, que significa “sofrer com” ou “passar por algo com alguém”, sempre esteve associada às pessoas religiosas, como Madre Tereza de Calcutá, que dedicou sua vida aos pobres, e a Jesus Cristo, que sempre esteve ao lado dos enfermos, leprosos, cegos e prostitutas. No entanto, nos tempos atuais, a compaixão desperta a atenção até mesmo do campo científico. Segundo pesquisas, todos têm em sua fisiologia o neurônio desencadeador desse sentimento.

“A neurociência social estudou a compaixão e descobriu que os circuitos cerebrais, por padrão, nos dizem para ajudar, mas eles somente funcionam quando interagimos com o outro”, explica Goleman. O assunto também é abordado no livro Born to Be Good: The Science of a Meaningful Life (algo como “Nascido para Ser Bom: A Ciência de uma Vida Significativa”, editora W.W. Norton & Company, ainda não publicado no Brasil), do psicólogo Dacher Keltner, diretor do Laboratório de Interações Sociais da Universidade da Califórnia em Berkeley (EUA). “O funcionamento do nervo vago, que se origina no topo da espinha dorsal, está associado aos sentimentos de cuidado que produzem uma sensação confortável no tórax. Pessoas com alta ativação dessa região cerebral são, portanto, mais propensas a desenvolver compaixão, gratidão, amor e felicidade”, afirma Keltner.

O padre Cireneu Kuhn, missionário da Congregação do Verbo Divino, presente em vários países, incluindo o Brasil, explica que, na parábola do bom samaritano, a compaixão também é comprovada como independente da religião. “Quem parou para ajudar o homem ferido na beira da estrada não foi o sacerdote, que, ao vê-lo caído, quase morto, tomou outra direção, mas sim um samaritano, um homem comum.” De uma forma simplista, basta pensar no impulso automático de salvar, por exemplo, um bebê engatinhando sozinho na beira de uma piscina. “Além disso, nascemos para viver em comunidade, somos todos interdependentes; se não fosse dessa forma, como viveríamos?

Nossa roupa e nosso alimento passaram por várias pessoas até chegar a nós. Se temos trabalho, é porque alguém nos deu esse emprego ou compra o produto que criamos. A compaixão é fruto de nossa interdependência”, explica a escritora e consultora de religião inglesa Karen Armstrong (veja boxe). Numa palestra em Curitiba, em 1999, o dalai-lama compartilhou a mesma ideia: “Todos temos a semente da compaixão. Trabalhar em conjunto faz parte da natureza humana, por isso eu acredito que o individualista não pode sobreviver”.

Bem diferente da piedade, que é somente um sentir pena de alguém, a compaixão resulta em uma ação. “Imagine alguém dentro de um buraco. Quando você sente pena dessa pessoa, você a abraça e a conforta. Quando sente compaixão, mais do que confortar, você quer ajudá-la a sair do buraco, e vai atrás de uma solução, como procurar por uma escada ou mais pessoas para ampará-la a sair de lá”, exemplifica Heloísa Capelas, especialista em desenvolvimento humano e diretora do Centro Hoffman, em São Paulo.

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É esse agir que realmente faz diferença na vida do outro, e na nossa, se o problema está conosco. O publicitário Marcos Alencar tem recebido os benefícios da compaixão desde o Réveillon de 2011, quando, num passeio de barco no Pará, sofreu um acidente e ficou tetraplégico. Além dos familiares, a ajuda dos amigos têm sido essencial para sua recuperação. “Boa parte do meu alto-astral e da minha vontade de melhorar cada vez mais vem do apoio deles. Estão sempre dispostos a me ouvir e apoiar, até mesmo com os gastos do tratamento, que são altos”, diz ele. Muitas foram as soluções para encontrar os recursos financeiros, desde promover rifa, feijoada e churrasco até criar um site, que tem o nome de Marcos, caso outras pessoas queiram ajudar.

O escritor Antonio Lino, um de seus amigos e uma das pessoas envolvidas na confecção do site, quando indagado sobre os motivos que o levam a ajudálo, responde: “Eu sempre quis o melhor para ele e continuo querendo, é isso que me incentiva. O que muda agora são somente as circunstâncias. Em vez de lamentar o acidente, olhamos para o que ele precisa neste momento, ou seja, uma boa clínica de reabilitação, e, por não ter plano de saúde, precisa de ajuda financeira. Outras vezes, o que ele necessita é de apenas uma escuta sincera para expressar o que está sentindo. Se eu tivesse pena do Marcos, não conseguiria me dispor a auxiliá-lo”.

Segundo Heloísa, do Centro Hoffman, a piedade, normalmente, revela que estamos nos vendo como um ser superior ao outro. “Se sentimos pena, é porque não acreditamos no apoderamento do outro, ou seja, que ele tenha recursos para sair daquela situação difícil em que se encontra, e nós é que temos de resolver suas questões. Por outro lado, quando sentimos compaixão, entendemos que ele é capaz de encontrar e de gerenciar suas próprias soluções. O que precisamos fazer é estar a seu lado para ajudá-lo a resgatar sua força interior e lembrá-lo de sua capacidade.”  

Portanto, quando a compaixão se manifesta verdadeiramente, não se corre o risco de, ao dar a mão a alguém, absorver aquela dor ou problema como se fossem seu. “Isso é uma confusão que as pessoas fazem. Elas pensam: ‘Não tenho como ajudar ninguém, pois já tenho as minhas tormentas e elas são muitas. Não vou acumular mais uma’”, explica Heloísa. Como bem diz o mestre dalai-lama, “compaixão não é sinônimo de autossacrifício”.

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O que nos impede de ser compassivos

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Como a compaixão é inerente ao ser humano, faz parte de sua natureza fisiológica e de seu senso de viver em comunidade, quando ela é exercida, surge um profundo sentimento de pertencimento e de alegria. Por outro lado, um comportamento muito focado no “eu” traz consequências negativas. “Centramos tudo em nós mesmos. Então, todas as experiências negativas, mesmo pequenas, se tornam grandes, dolorosas. Mas, quando pensamos no outro, nossa mente se amplia e nossos pequenos problemas se tornam realmente pequenos.”

A experiência da designer gráfica Ana Paula Cury como voluntária no Hospital das Clínicas de São Paulo, onde atua como palhaça desde 2010, comprova isso: “Fatos que antes me faziam sofrer, hoje eu percebo que eram insignificantes, puras picuinhas. Estou bem mais leve, não fico chateada facilmente e, o melhor de tudo, descobri que prefiro ser feliz a ter razão em tudo”, diz Ana Paula.

Se, então, nascemos com a compassividade e sentimos as dádivas desse sentimento em nossa vida, por que vivemos numa sociedade tão individualista e, muitas vezes, ficamos alheios à dor do outro? “De uma forma generalizada, isso se deve ao nosso costume de estarmos quase sempre olhando para nossos próprios interesses”, diz Geshe Lobsang Tenzin Negi. Professor do departamento de religião da Universidade Emory, ele conduz neste mês um retiro, no interior de São Paulo, pela Palas Athena, sobre como cultivar comportamentos compassivos e superar o egoísmo. E, como foi visto, a compaixão somente se manifesta quando olhamos o semelhante.

Não é um simples olhar, contudo. “O olhar da compaixão é aquele que nos faz colocar no lugar do outro e fazer por ele o que gostaríamos que ele fizesse por nós, e não fazer ao outro o que não gostaríamos que ele fizesse a nós”, explica Karen Armstrong. Essa é a regra de ouro, como a escritora inglesa costuma dizer, e foi ela o principal ensinamento de Confúcio (551 a.C. a 479 a.C), tido como um dos principais filósofos chineses de todo o Oriente.

“Examine seu coração, descubra o que faz você sofrer e não inflija esse sofrimento ao outro. Toda vez que se sentir tentado a dizer algo negativo sobre alguém, pense: ‘Como eu me sentiria se alguém dissesse isso a meu respeito’ ”, propõe ela. Para o lama Padma Samten, esse é o grande desafio. “Colocar-se no lugar do outro implica entender essa pessoa em seu contexto de vida. Entender como funciona seu estado mental e emocional. A partir daí, surge uma energia poderosa de compreensão”, diz Samten.

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Esse exercício vale não somente em situações como a do homem caído no metrô de Nova York e os outros exemplos já citados, mas também no dia a dia, com as pessoas com as quais nos relacionamos.

“Quantas vezes não ficamos com raiva de alguém pelo simples fato de ela discordar de nossa ideia. Quantas vezes vamos ajudar partindo de um pressuposto nosso que achamos o correto. O julgamento é mais um obstáculo para um olhar compassivo. Quando se argumenta com alguém ou se tenta ajudá- lo, é necessário despir-se de suas razões, não pressupor que sabe o que ele está passando ou falando e escutar atentamente. Só assim se é verdadeiramente atento ao bem-estar alheio”, explica a psicoterapeuta junguiana Lúcia Rosenberg.

O dalai-lama diz que, muitas vezes, nosso nível de preocupação com o outro depende da atitude que ele adota. “Se ele age de forma negativa, nosso senso de compaixão desaparece. Um senso de compaixão verdadeiro, porém, é o que nos leva a vê-lo como tendo exatamente o mesmo direito que eu à felicidade.” Se queremos ter o direito de escolher, opinar e viver da maneira que bem entendemos, devemos dar o mesmo direito ao outro também, não é mesmo?

Despertar a compaixão

Pode ser um grande desafio agir compassivamente quando ocorrem discussões mais exaltadas com agressão verbal. “A compaixão é uma característica da inteligência espiritual. Se uma pessoa lhe diz um monte de barbaridades, pode ser que todo aquele lixo emocional pertença a ela, e não a você”, explica Heloísa. “Por isso, é importante o autoconhecimento, para não absorver aquilo como se fosse seu. Dessa forma, você não vai sentir raiva, pois sabe que aquilo não lhe pertence. Quando sente raiva, você fica grudado ao outro. Ao perdoar, você se desgruda.”

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O saber de si também é importante no processo de despertar a compaixão, pelo simples fato de que ser compassivo requer amar o outro. Mas amar o outro implica primeiro se amar. Uma das principais máximas de Jesus Cristo foi: “Ame o próximo como a ti mesmo”.

Para o padre Cireneu Kuhn, amar-se exige, entre outras variantes, dar uma trégua aos autojulgamentos e se perdoar. “Reconheça-se como um ser humano que tem limitações, perdoe-se. Deus não fica focado em nossos erros. Nós temos que ter esse olhar para com o outro, ver que ele erra assim como nós erramos, mas tem atributos como nós também temos”, aconselha ele. Heloísa concorda e acredita que esse é um gesto de compaixão para consigo mesmo. “Conforme nos conhecemos melhor, percebemos que somos a soma do bem e do mal. Eu sei que eu sou autoritária, egoísta, mas sei também que sou gentil e honro minhas amizades. Quando eu consigo me entender dessa forma, consigo ser compassiva com o outro.”

A partir daí, Geshe Lobsang diz que é importante aperfeiçõar um pensamento. “Tenha sempre em mente que todas as pessoas que você encontra, não importa seu país, cultura, religião, classe social, querem ser felizes e livres de sofrimento, da mesma forma que nós queremos.” Heloísa diz que essa compreensão revela algo mais. “As pessoas vivem com suas verdades e aprendizados, mas, no final, o que todo mundo quer é amar e ser amado, no entanto, muitas vezes, não aprendemos a fazer isso da forma correta e nos expressamos erroneamente.”

Como a família é o primeiro grupo em que aprendemos a nos relacionar, a viver com outras pessoas, é lá que a compaixão deve ser inicialmente treinada e colocada em prática. “Preste atenção em sua família e veja se alguém está sendo deixado de lado e se algo não está funcionando bem. Ouça atentamente essa pessoa, nós somos bons em falar, mas péssimos em ouvir”, adverte Karen.

De acordo com os ensinamentos do dalai-lama, uma boa forma de cultivar certos valores e rejeitar outros é avaliar os benefícios que colhemos de cada um deles. “Pense sobre a compaixão e o que ela lhe traz. Agora pense sobre o ódio e observe como ele age na sua vida, na sua saúde e na vida das pessoas à sua volta. Dessa maneira, crescemos a cada dia, mas, se não fizermos nada para reduzir nosso ódio e cultivar a compaixão, tudo ficará como está, a semente nunca irá germinar.”

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Mundo de compaixão  

Em 2010, Karen Armstrong, escritora inglesa e consultora de religião comparada, ganhou o prêmio TED Prize. A organização sem fins lucrativos, que divulga conferências pela internet, premia anualmente um palestrante para estimular o seu projeto a crescer. No caso de Karen, um tratado da compaixão para ser instaurado no mundo todo, das escolas aos espaços políticos. “Compaixão une todas as tradições espirituais e, por isso, é urgente na economia capitalista, que é competitiva e individualista.” Centenas de países assinaram o tratado e a compaixão vem sendo aplicada em diversas áreas, como inovação, empreendedorismo social e sustentabilidade. “No ano passado, por exemplo, o Iraque e a Jordânia criaram uma competição pela internet em que os integrantes eram convidados a postar uma ação compassiva todos os dias durante um mês. Cerca de 40 mil pessoas participaram”, orgulha-se. O Google também assinou o tratado. A forma que a empresa multinacional de serviços online encontrou para aplicar a compaixão no dia a dia da companhia foi adaptar num curso as lições do livro de Karen, 12 Passos para uma Vida de Compaixão (Editora Paralela).

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