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Valéria Brandini fala do papel da tecnologia na vida dos jovens

A inquietação diante do humano tem movido as pesquisas da cientista social paulista Valéria Brandini. Aqui, ela radiografa a juventude da era digital.

Por Texto: Raphaela de Campos Mello | Ilustração: Gustavo Duarte | Foto: Mari Winter
Atualizado em 19 jan 2017, 13h54 - Publicado em 26 ago 2013, 17h16
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A garota de 10 anos, aluna de um colégio de freiras no interior de São Paulo e única, dentre todas, apaixonada por heavy metal, hoje está no segundo pós-doutorado. O desejo de escrever uma tese sobre o rock and roll levou a cientista social e comunicóloga paulista Valéria Brandini a se debruçar sobre a antropologia da juventude. “Há 20 anos, comecei a analisar a cultura material e os significados dela – a música, a estética, os rituais – e entendi que todas essas manifestações de significado se realizam por meio do consumo do simbólico”, diz ela, que atesta: “As pessoas são o que consomem, da água à poesia, desde os primórdios”. Da paixão pelo rock nasceu a vontade de estudar a relação entre moda e cultura urbana. Não teve outro jeito. Valéria atravessou as últimas décadas pulando de interesse em interesse, inquietação em inquietação. “Tenho uma curiosidade quase doentia. O que para a maioria das pessoas é sacrificante, como ler um livro de 600 páginas, para mim é fonte de grande prazer”, afirma. Atualmente, ela é professora do curso de pós-graduação de gestão em moda na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP) e cofundadora do Núcleo Xamã, na capital paulista, escritório especializado em ciência aplicada ao mercado. Por meio de pesquisas apoiadas em campos diversos, a exemplo de antropologia, sociologia, semiótica, psicanálise e neurociência cognitiva, ela e sua equipe destrincham, com o alcance digno de uma ressonância magnética, os fenômenos sociais contemporâneos, entre eles o avanço da tecnologia e seu impacto nas relações humanas, além do comportamento dos jovens. Prepare-se, então, para conhecermais de perto os millennials, termo usado para designar a geração que nasceu e cresceu em plena era virtual e, por isso, se recusa a respirar outro ar que não o da liberdade de expressão.

Como você define o termo millennials?

Trata-se de uma classificação americana criada para designar aqueles que nasceram entre os anos 1980 e 2000. Desaprovo esse tipo de rótulo direcionado a toda uma geração, pois a sociedade é cada vez mais heterogênea. Em linhas gerais, esse guarda-chuva abarca o pessoal que cresceu em meio às tecnologias e à internet e se tornou nativo do virtual. Ao mesmo tempo, esses jovens são tidos como multitarefa, mas essa característica não é exclusividade deles. A sociedade como um todo, mesmo os mais velhos, são multitarefa hoje em dia. Mais que individualistas, os millennials são muito autocentrados. Isso é compreensível, porque no mundo virtual você pode ser o que quiser – porém só na sua cabeça e naquele espaço, e não no mundo real. Por exemplo: o indivíduo tem ideias e gosta de escrever, então cria um blog. Isso não quer dizer, no entanto, que ele seja um escritor. A internet não passa pelas legitimações do mundo real. Ela se sustenta de projeções, dando a ilusão do “sou”. Daí vem a ideia da hipercapacidade. Só que ser capaz de fazer várias coisas não significa ser bom em tudo o que faz. Poucas são as pessoas que conseguem tal façanha.

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Que dificuldades essa moçada encontra no cotidiano por achar que tudo funciona na velocidade da banda larga?

O imediatismo dessa geração é um problema. Como o virtual incentiva o autocentrismo e gera a ilusão de superioridade, ao passar pelas provas da vida o sujeito desaba. Os millennials são os filhos tiranos de 10, 15 anos atrás, criados por pais permissivos ao extremo. Falta a eles resiliência. Em vez de absorver o choque e prosseguir, eles desistem ou deprimem. E falam: “Isto não é bom o suficiente para mim”. Como professora universitária, conheço diversos alunos que já estão na sexta, sétima tentativa de faculdade. Não conseguem terminar nenhuma. O jovem entra em engenharia e logo no primeiro ano quer projetar, rejeitando as matérias de cálculo, parte fundamental do processo. Esse pessoal não foi criado para carregar o piano, e sim para ser feliz. Isso é uma ilusão. Você deve ser criado para enfrentar as barreiras da vida e para lutar pela felicidade. Afinal, o melhor da felicidade é sua conquista. É verdade também que a vida se tornou muito mais simples em variados aspectos por causa da tecnologia, e nós acabamos nos habituando a essas facilidades.

O que esperar de um futuro que será construído pela geração dos millennials?

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Eles pertencem às classes média e média alta. Entretanto, os demais jovens são, em certa medida, influenciados por esse grupo, que tem tempo e dinheiro para colocar conteúdo nas mídias. Até onde vai essa influência? Existe uma grande distorção em relação a isso. Os millennials são influenciadores até certo ponto, porque os valores de base, provenientes da família, da escola e dos amigos, são mais fortes que a influência dos millennials no sentido de determinar comportamentos e modificar valores na sociedade.

Em que medida o uso da tecnologia tem afetado a condição emocional das pessoas, não só dos jovens?

Ao contrário do que pensamos, a tecnologia não é desumanizadora. Ela nasceu como forma de o humano se relacionar com o mundo e com a natureza. O problema está no excesso. Ao se usar pedra para quebrar coco, a tecnologia já está sendo empregada. Nesse sentido, todas as tecnologias alteraram a relação das pessoas com a realidade, desde o fogo até a internet. No entanto, o uso extremo dos smartphones fez com que essa caixinha se tornasse uma prótese do ser humano integral, onde o “eu” fica armazenado e por meio da qual se manifesta no mundo. Sem ela, surge a sensação física e neurológica de ser meio “eu”, principalmente entre os jovens. É uma sensação de perda do momento presente, que começou a gerar doenças emocionais, como o comportamento obsessivo-compulsivo em relação à tecnologia. Essa perturbação toma de assalto tanto um jovem que deixa de prestar atenção à conversa dos amigos numa festa porque está mais preocupado em registrar aquele momento quanto um executivo que se desespera por não conseguir acessar seu smartphone numa reunião.

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Já é ultrapassado dividir a realidade entre real e virtual?

Essa separação ainda existe, só que, dependendo do subgrupo, pode ser mais forte ou mais fraca. O que chamo de realidade interseccional é uma forma de estar no mundo que se tornou a intersecção entre essas duas realidades, onde o ser humano vive hoje. Ou seja, o que ele vivencia no mundo virtual afeta o real e vice-versa. Aí ocorre a “avatarização” do real, que é quando alguém passa a acreditar na persona que inventa como sua projeção na internet. E mais: tende a tornar aquilo vivenciável no real. Muitas vezes, a pessoa produz um problema para si mesma. “O que você conhece de fato sobre esse ou aquele assunto?”, alguém pode indagar. Até a questão da imagem física pode acarretar complicações à medida que a pessoa acredita ser necessário se manter igual à foto, em todos os sentidos.

Como a supremacia da tecnologia tem afetado a relação entre pais e filhos e a hierarquia nas empresas?

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Os pais costumam aceitar o comportamento imediatista e autocentrado dos millennials porque sentem culpa. “Fui eu que criei assim”, pensam. Além disso, eles envelheceram, mas mantiveram a juventude dentro de si. Logo, são muito mais condescendentes e flexíveis. O problema maior está no mundo corporativo. O jovem entra no mercado com a ideia de que é para lá de especial e, quando recebe uma negativa, deprime, não produz ou se retira de campo. Na última década, muita gente despontou precocemente, sobretudo no ramo da tecnologia. Só que, se tomarmos como base a história da humanidade, os gênios sempre foram a exceção.

Está havendo, especialmente entre os jovens, uma confusão entre os significados de informação e conhecimento?

Informação e conhecimento são coisas distintas. A primeira é um dado; o segundo vem da inteligência interpretando o dado e dos processos de aprendizado, que geram uma evolução pessoal e transformam o indivíduo. A informação pura e simples não gera transformação. O conhecimento, sim. A ilusão do mundo virtual é a de que, como você tem acesso a tudo, acumula conhecimento. Não é verdade. Para ter conhecimento, é preciso dispor do tempo de maturação. Muita leitura, capacidade de análise. A informação pela informação passa. Já o conhecimento fica porque se torna uma parte do que você é. Ele muda seu olhar.

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Como lidar com os adolescentes que estão sem propósito de vida, surfando o dia todo na rede e nada mais?

Como os millennials são pouco resilientes, eles sentem medo, e o medo faz com que, muitas vezes, permaneçam na casa dos pais e deixem de superar obstáculos. Observo muitos casos de depressão devido a esse quadro. Há um trocadilho aqui: no virtual, a rede segura. Na vida, você cai e se espatifa no chão. O bom é que o ser humano tem uma plasticidade imensa. Por mais que a adolescência perdure, em algum momento essa juventude vai formar seus processos adaptativos e encontrará seu caminho enquanto povo, sociedade.

O que de melhor nós podemos aprender com os jovens da atualidade?

Que as maneiras de ser e de viver, bem como as aspirações e os objetivos, podem ser diversos. Eles são extremamente hedonistas. Se de um lado isso atrapalha, de outro faz com que se inventem novas profissões, tornando aquilo que gostam de fazer em meio de vida. Desse modo, diferentes tipos de produção profissional podem ser valorizados, dignos, e conferir honradez à pessoa, e não apenas estar no topo, como minha geração acreditava. O respeito que esses jovens têm pela diversidade é outro aspecto muito importante. Eles lutam pelo diferente de si. Não carregam preconceitos. Logo, nos ensinam a sermos humanos melhores. Também querem que se fale a real. Não toleram ser iludidos pela mídia, pela política. Vão atrás da verdade porque querem transparência em tudo, justamente por terem mais acesso à informação.

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Qual a relação entre os millennials e a onda de manifestações que se espalhou recentemente pelo país?

Tudo isso que estamos testemunhando é influência dos millennials – eles não estão apenas por trás das manifestações. Rebelar-se é do humano e, sobretudo, expressão da força social do jovem. Os protestos sob a influência dos millennials são visivelmente amigáveis. É uma geração que, até pela criação menos repressora dos pais, preza valores humanistas. Por outro lado, está havendo uma tomada de consciência da força do coletivo. Podemos listar alguns fatores: a transparência instituída pela internet, a crise econômica, o desencanto dos jovens, a necessidade de mudanças urgentes. Mas agora eles têm de dar um segundo passo a fim de desenvolver uma visão política e torná-la instrumento de poder deles. Não há como haver política sem liderança, sem representação. As redes sociais são o meio, porém é preciso haver conteúdo. Ganhar as ruas é fantástico, no entanto precisamos das lideranças que irão representar a massa e apresentar reivindicações junto ao poder público.

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